Specula Revista de Humanidades y Espiritualidad

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A HUMANIZAÇÃO DO SAGRADO: DEVOÇÃO, LITURGIA E IMAGENS NO LIVRO DE HORAS 50, 1, 016 (PARIS, C. 1460)

THE HUMANIZATION OF THE SACRED: DEVOTION, LITURGY AND IMAGES IN THE BOOK OF HOURS 50, 1, 016 (PARIS, C. 1460)

Patricia Marqués de Souza1

Fechas de recepción y aceptación: 31 de julio de 2022 y 7 de diciembre de 2022

DOI: https://doi.org/10.46583/specula_2023.1.1093

Resumo: Este artigo tem como objetivo principal analisar as funções e os possíveis usos do Livro de Horas 50, 1, 016. Segundo o estudo desenvolvido pelo medievalista François Avril, este códice foi produzido pelo Mestre de Coetivy (também chamado de Colin d’Amiens) por volta de 1460 em Paris e, atualmente, faz parte do fundo histórico da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Neste sentido, nossa intenção é apresentar o contexto de criação e popularização dos Livros de Horas na Europa latina medieval para, posteriormente, realizarmos um estudo de caso sobre o códice que pertenceu à Casa do Infantado da Real Biblioteca Portuguesa. Assim, nossa proposta será examinar de que forma a união entre textos e imagens poderia ser utilizada como ferramentas de expressão visual e de devoção laica na Paris da Baixa Idade Média à luz do conceito de humanização do sagrado defendido pelo medievalista Jean-Claude Schmitt.

Palavras-chave: Livros de Horas, Baixa Idade Média, Imagens Cristãs, Devoção, Manuscritos Iluminados, Iluminuras.

Abstract: The main objective of this article is to analyze the functions and possible uses of the Book of Hours 50, 1, 016 According to the study carried out by the medievalist François Avril, this codex was produced by the Master of Coetivy (also referred to as Colin d'Amiens) around 1460 in Paris and is, currently, part of the historical fund of the National Library Foundation of Rio de Janeiro. In this sense, our intention is to present the context of creation and popularization of the Books of Hours in medieval Latin Europe to subsequently conduct a case study on the codex that belonged to the Casa do Infantado of the Royal Portuguese Library. Within this context, our intention will be to examine how the union between texts and images could be used as tools of visual expression and laity devotion in the Late Middle Ages Paris from the concept of humanization of the sacred defended by the medievalist Jean-Claude Schmitt.

Keywords: Books of Hours, Late Middle Ages, Christian Images, Devotion, Illuminated Manuscripts, Illuminations.

1. INTRODUÇÃO

Os Livros de Horas foram os livros devocionais mais populares entre os leigos, especialmente entre as mulheres, entre os séculos XIII e XV na Europa de acordo com os estudos de Walther (2005), Wieck (1997), Hamel (2006) e Harthan (1977). Até hoje, os Livros de Horas formam a maior categoria de manuscritos iluminados medievais conservados em acervos de todo o mundo. Eles também são exemplos de uma das maiores invenções artísticas da Idade Média: a iluminura, ou seja, a pintura em pergaminho ao lado dos vitrais, das gravuras e dos retábulos.

Esses códices iluminados destinavam-se à elite aristocrática leiga e deveriam ser utilizados na vida cotidiana como suporte para a meditação e para as orações individuais. Estamos falando de uma época em que a espiritualidade medieval foi, pouco a pouco, mudando do ambiente público para o privado, deixando as paredes exclusivas das igrejas e mosteiros para entrar também nas casas e nos quartos seculares a partir do século XII.

É preciso lembrar que os livros e as imagens foram de extrema relevância para o processo de mudança e renovação que ocorreu na devoção cristã da Baixa Idade Média e é justamente este o ponto de reflexão deste artigo: estudar as funções devocionais de um códice francês confeccionado pelo Mestre de Coetivy, por volta de 1460, na França. Destacamos que são as próprias características da fonte primária que definem tanto o recorte temporal quanto o cronológico deste artigo. Deste modo, para alcançarmos nosso objetivo, iniciaremos o texto apresentando as principais características gerais de um Livro de Horas e, posteriormente, examinaremos o Ms. 50, 1, 0162 que se encontra na Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, no Brasil.

Neste sentido, uma das intenções deste artigo é realizar a comparação e análise iconográfica das dez iluminuras presentes no Livro de Horas 50, 1, 016. A hipótese é de que estas imagens foram produzidas em um contexto de auge do culto mariano na Europa cristã e do esforço da humanização tanto do Cristo quanto de sua mãe por parte do clero (Schmitt, 2007). Desta maneira, se fazia necessário meditar sobre a vida de Jesus e da Virgem e, se possível, adquirir imagens ou livros de uso privado para este fim ajudando, assim, o cristão a identificar quais eram os modelos de obediência, humildade, santidade e, sobretudo, de fé que o ajudariam na busca pela salvação individual.

Para que os objetivos deste artigo sejam alcançados, o texto foi dividido em sete tópicos que abordaram as temáticas da espiritualidade laica cristã, do advento dos Livros de Horas, do estado da arte da produção bibliográfica sobre o acervo da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, das características do Ms. 50, 1, 016, da análise iconográfica das iluminuras, uma reflexão sobre as funções do códice e, por fim, discorremos sobre os possíveis usos do livro através do tempo.

A metodologia de pesquisa utilizada seguiu a proposta de Eric Fernie. Para o autor, é tarefa do historiador explicar a aparência visual de uma obra (Fernie, 1996, p. 10). Para que isso seja possível, Fernie propõe três etapas metodológicas principais que devem ser utilizadas no momento de análise de uma fonte visual. A primeira delas é: explicar a aparência visual da obra através da observação de estilos, formas, cores e composição. A segunda: o autor adverte sobre a necessidade de investigar documentos que assegurem a autenticidade, a data, as técnicas e a proveniência da obra, entre outros fatores. A terceira e última: a realização de uma análise sobre o contexto social em que o objeto foi produzido e o seu local/proprietário de destino. No presente artigo iremos passar por estas três etapas de análise e apontaremos os desafios específicos da investigação científica na área de Ciências Humanas.

Após apresentar nossas intenções e objetivos para este artigo, no próximo tópico iniciaremos nossa análise sobre a nova espiritualidade cristã que despontou no século XIII e que serviu como pano de fundo para o surgimento e popularização dos Livros de Horas na Europa.

2. A ESPIRITUALIDADE LAICA E A DEVOÇÃO PRIVADA

A partir do século XIII, a religiosidade cristã se modificou, pois as práticas litúrgicas passaram a ser cada vez menos privilégio exclusivo do clero. Sendo assim, a introspecção tornou-se necessária para quem quisesse aspirar a uma vida mais santificada (Vauchez, 1995, p. 169). Neste novo clima espiritual, o cristão foi instigado a participar mais ativamente da busca pela sua salvação e, por isso, é possível falar de um “tempo dos leigos”, pois um número crescente de fiéis passou a dedicar mais tempo ao recolhimento, à reflexão e à prática devocional (Vauchez, 1995, p. 139). A partir deste momento, o futuro pertencimento da alma ao reino dos céus deveria ser alcançado, sobretudo, através dos esforços pessoais dos próprios leigos, no qual a responsabilidade destes passou a ser essencial e decisiva.

No século XIII, São Francisco de Assis propôs uma religiosidade, na qual a doutrina cristã fosse mais acessível aos ouvintes. De acordo com Georges Duby, a partir da pregação de Francisco e da criação da Ordem dos Irmãos Menores3, o cristianismo deixou de ser uma religião apenas de ritos e de padres. Finalmente tornou-se uma “religião popular”, pois Francisco concebeu uma Ordem em que o essencial seria a prática comum e a vivência da pobreza evangélica (Duby, 1979, p. 219). Todos os membros de sua fraternidade deveriam ter os mesmos direitos e deveres. Para Vauchez, Francisco conseguiu atingir e unir o propósito da evangelização, da obediência e da reflexão: “Poucos homens de Deus associaram, como ele [Francisco de Assis], em um grau excepcional, o objetivo apostólico e a experiência ascética, o evangelismo integral e o espírito de obediência” (Vauchez, 1995, p. 127).

Podemos dizer que a visão desta nova espiritualidade cristã pregava a defesa de um laicato mais ativo, ou seja, defendia que tanto os homens quanto as mulheres deveriam se tornar os protagonistas da busca pela sua própria salvação. Assim, eles não deveriam se contentar com a realização de atitudes passivas de contemplação e audição ou esperar que apenas os monges rezassem por suas almas em datas litúrgicas específicas do ano. Em outras palavras: era preciso participar cotidiana e ativamente de todo o longo caminho que levava à morada celestial.

Foram as ordens mendicantes que animaram, pelo menos nas cidades, estas renovações na vivência da fé cristã. Por exemplo: os dominicanos4 procuravam sensibilizar tanto os próprios clérigos quanto os leigos através da exposição oral, eloquente e persuasiva, de seus sermões. Assim, eles buscavam atrair o público através da pregação da Palavra (que deveria ser dita de forma mais acessível possível) e do uso de exempla5 (Le Goff, 2004). Desta forma, podemos dizer que foi a partir desta época que os elementos persuasivos, afetivos e de identificação pessoal passaram a ser características essenciais de expressão da espiritualidade cristã ocidental.

Também devemos pontuar que uma das maiores mudanças na espiritualidade cristã à época foi a crescente popularização do culto à Virgem Maria que era muito forte entre os cistercienses desde o século XII e que foi largamente difundido pelas ordens mendicantes, especialmente, pelos franciscanos e pelos carmelitas no século seguinte. A intercessão mariana, considerada quase infalível perante seu Filho, passou a ser fortemente estimulada e fazendo com que práticas devocionais como o recital de orações em sua honra, como a Ave Maria e antífonas como a Salve Regina, passassem a integrar o cotidiano dos fiéis que buscavam a salvação e uma boa morte. Era preciso, cada vez mais, ter uma forma de acesso mais individual e privada a Deus e aos seus intercessores:

Essa crença explica a importância singular da Virgem, que havia se tornado o agente universal para todas as súplicas privadas. Uma pessoa se dirigia à mãe de Deus como a sua própria mãe e ganhava o seu favor honrando-a por intermédio de uma imagem. Como havia suas imagens por todos os lados, as pessoas procuravam algum aspecto de distinção pessoal para suas próprias imagens (Belting, 2010, p. 531).

Com a popularização do culto mariano, a Virgem tornou-se a principal figura de devoção para muitos cristãos e o centro das representações artísticas, de modo geral. Foi neste contexto de crescente laicização do cristianismo e do culto à Virgem que surgiram os Livros de Horas, pois um fator comum a todos os livros deste gênero é que o seu eixo central está relacionado ao culto à Maria, como veremos a seguir.

3. OS LIVROS DE HORAS: ENTRE IMAGENS E PALAVRAS

Sendo o gênero de livro mais popular durante a Baixa Idade Média6, os Livros de Horas são livros de orações e de meditação feitos por leigos e para leigos (Hamel, 2006). O primeiro Livro de Horas conhecido foi produzido no século XIII e, desde então, esses livros são conhecidos como best-sellers medievais de acordo com os trabalhos de referência de Walther, 2005; Wick, 1997; Hamel, 2006; Harthan, 1977. Sendo, geralmente, um códice manuscrito iluminado, o período de maior produção desse gênero literário foi entre os séculos XIII e XV. Por conseguinte, a produção destes livros foi tão extensa na Baixa Idade Média, ao ponto de se tornarem a maior categoria de manuscritos iluminados que sobreviveram até os dias atuais.

Os Livros de Horas têm esse nome porque estão organizados de acordo com as oito horas canônicas7 que indicam os horários específicos, do dia e da noite, em que os monges devem orar Por isso, percebemos que esses livros são exemplos significativos das mudanças na forma de vivenciar a espiritualidade na Idade Média, pois são testemunhas das práticas devocionais dos clérigos que foram incorporadas, aos poucos, pelos leigos em suas casas e palácios.

Por serem originários do livro de orações dos monges, o Breviário,8 os Livros de Horas contém orações, antífonas e hinos que deveriam ser recitados em momentos específicos do dia, respeitando as oito horas canônicas e que eram destinados à devoção laica e privada. Os primeiros Livros de Horas formavam uma versão mais curta do ciclo de orações diárias e salmos recitados por membros de ordens religiosas. Desta maneira, os Ofícios que compõem os Livros de Horas não costumavam ser muito longos e os livros geralmente eram pequenos e portáteis, o que facilitaria sua utilização.

Na Idade Média, uma hora canônica significava um espaço de tempo reservado às orações ou à meditação. O cristianismo, seguindo práticas seculares romanas e tradições judaicas, estabeleceu regras para o recital de preces em momentos exatos do dia (Harthan, 1977, p. 12).9 Assim, a celebração da liturgia diária e a leitura do Ofício Divino deveriam seguir as horae e a recitação dos salmos sete vezes ao dia também se tornou uma prática monástica. Portanto, o nome do Livro de Horas se remete tanto às horas canônicas observadas pelos monges, quanto ao seu livro de origem, o Breviário. Desta maneira foi a partir da estrutura textual do Breviário que o Livro de Horas incorporou o Calendário, as Pequenas Horas do dia, os Salmos Penitenciais, as Litanias, o Ofício dos Mortos e o Sufrágio dos Santos em seus corpus. Outros salmos, ofícios e orações à Virgem foram incorporados posteriormente.

O Livro de Horas é dividido em diferentes ofícios que eram escritos geralmente em latim, língua oficial da Igreja, mas que também poderiam apresentar o Calendário ou orações escritas em língua vernácula, como o francês ou o inglês, por exemplo. O conteúdo geralmente apresentava uma estrutura padrão, mas poderia conter variações de acordo com os costumes de cada diocese ou por causa do gosto do proprietário que realizou a encomenda.

As miniaturas do Livro de Horas eram de temas variados e, muitas vezes, acompanhavam o tema do texto. Elas poderiam representar visualmente as temáticas sagradas ou as vidas dos santos, bem como as atividades cotidianas como o trabalho do campo ou o ócio da corte. Estes livros poderiam ser de vários tamanhos, cores e formas. A qualidade técnica das miniaturas era um indicativo da importância do ateliê urbano que o criou e do poder aquisitivo do proprietário que a encomendou, pois o número de imagens presentes em um códice interferia diretamente no seu preço.

É imprescindível lembrar que as miniaturas não reproduziam o conteúdo textual, mas dialogavam com o texto criando, para o leitor e para espectador, novas possibilidades interpretativas que mobilizavam diferentes capacidades cognitivas. Desta forma, as imagens medievais cristãs devem ser entendidas como suportes para a devoção e como mecanismos de expressão da fé e da piedade, sendo de igual importância que o conteúdo textual, pois ambos ajudam a contar uma história, a lembrar, a ensinar e, sobretudo, a proporcionar empatia. Neste sentido, a imagem nunca deve ser entendida como inferior a um texto ou como uma simples "tradução visual" dele, já que tanto as imagens quanto os textos formam um complexo par de suportes devocionais característicos do cristianismo.

Como os Livros de Horas foram feitos para uso privado e sem uma supervisão religiosa formal, o seu conteúdo poderia variar de acordo com o gosto e a riqueza do proprietário ou de acordo com os costumes de cada diocese. Apesar disso, um fator comum a todos os livros é que o seu eixo central está relacionado ao culto à Virgem Maria. Desta maneira, caso fosse desejo de um leigo comprar um Livro de Horas, ele teria que ir a um ateliê urbano que, muitas vezes, estaria localizado próximo às universidades (uma das instituições surgidas na Idade Média). Neste local já poderia haver livros prontos, mas os fiéis também podiam escolher os textos e as imagens que mais gostassem, dentro de um conteúdo prévio e comum, para compor o seu próprio códice.

A possibilidade de escolher as orações e os trechos das vidas dos santos que seriam representados em seu próprio livro devocional foi uma grande novidade que ajudou no processo de popularização dos Livros de Horas entre os leigos da nobreza. Podemos fazer uma breve comparação desta prática com o processo contemporâneo de customização, ou seja, de personalização de objetos de acordo com os gostos e características do cliente.

Depois de termos apresentado brevemente as principais características dos Livros de Horas, chegou a vez de realizar um breve balanço historiográfico sobre as publicações pioneiras e mais atuais que se dedicaram a estudar o conjunto de Livro de Horas que fazem parte do acervo de manuscritos da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

4. O ESTADO DA ARTE

Apesar da importância histórica do códice 50, 1, 016 para a espiritualidade e devoção da nobreza europeia, ele ainda carece de poucos estudos. Contudo, faremos breves comentários sobre as pesquisas que já foram publicadas e que se dedicaram a estudar o acervo em questão.

O livro 50, 1, 016 foi mencionado pela primeira vez no catálogo escrito em português: “Exposição Permanente de Cimélios da Biblioteca Nacional” de 1885, ou seja, no século XIX. Mais tarde, voltou a ser citado em outro catálogo: “Manuscritos Século XII-XVIII''. Pergaminhos iluminados e documentos preciosos” publicado em 1973 quase um século depois. Estes catálogos possuíam fins específicos de catalogação e divulgação do acervo da biblioteca, além de apresentar breves informações técnicas.

As pesquisas com viés litúrgico e historiográfico sobre o Livro 50, 1, 016 foram iniciadas, apenas, no final do século XX. Por exemplo: a primeira publicação seguindo esta temática foi escrita por Frei Damião Berge (1973). O objetivo em questão era estudar o conjunto de imagens e textos que formavam os Livros de Horas à luz da sua importância litúrgica para a comunidade cristã. Foi dada particular atenção ao Livro de Horas 50, 1, 1.

A segunda pesquisa foi uma dissertação de mestrado profissional em Bens Culturais realizada por Vera Lucia Miranda Faillace, a então chefe do setor de manuscritos da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, que foi defendida em 2009, e que se tornou o catálogo mais atualizado sobre os Livros de Horas da instituição. A versão atualizada deste catálogo foi publicada em formato impresso (2016) e contou com a contribuição de mais especialistas como veremos a continuação.

Este catálogo também apresenta três importantes textos introdutórios: o primeiro foi escrito por Marcus Vinícius Ribeiro, o então coordenador geral do Centro de Pesquisa e Publicação da Fundação Biblioteca Nacional, e que se chama "Manuscritos da fé" (2016). Este texto fala sobre a importância dos manuscritos medievais, especialmente os Livros de Horas, para a espiritualidade cristã. O segundo texto foi produzido pela professora de História Medieval da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutora Maria Beatriz de Mello e Souza, com o título "Iluminuras de Horae: uma introdução à iconografia dos Livros de Horas da Biblioteca Nacional” (2016). Neste capítulo, o foco da autora foi estudar a importância das iluminuras como objetos de devoção privado. Por fim, temos o artigo do bibliotecário e historiador francês François Avril, um grande especialista em iluminuras medievais. O seu estudo intitula-se: “O acervo do Livro de Horas iluminados da Biblioteca Nacional do Brasil” (2016) e foi o primeiro a propor possíveis datações, origens, filiações e circulação dos Livros de Horas que compreendem o acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Voltaremos a abordar e a dialogar com os estudos de Avril posteriormente.

Um importante artigo sobre esta coleção, e especialmente sobre o Livro de Horas dito de D. Fernando, foi publicado pela medievalista Vânia Leite Fróes (2011), professora titular de História Medieval da Universidade Federal Fluminense (UFF) e uma das pioneiras no estudo dessas fontes medievais no país. Neste artigo (2011), Fróes questiona a origem social da obra, ou seja, a identidade de seus mecenas e de seu público-alvo. Além disso, a autora percorreu a história dos usos do códice em questão, definindo o Livro de Horas como um thesaurus.

Também temos o artigo publicado por Pinheiro (2020) e que é intitulado “O livro do olhar e do silêncio". O texto em questão aborda a importância dos Livros de Horas enquanto objeto devocional laico. Finalmente, os estudos mais atuais sobre este livro e sobre a coleção da Casa do Infantado estão sendo investigados pelo projeto de doutorado e pelos artigos publicados pela pesquisadora Escano (2017).

Após realizarmos breves considerações sobre os textos citados supra, chegou a vez de iniciarmos o estudo de caso da principal fonte de análise deste artigo.

5. O MANUSCRITO 50, 1, 016

O Livro de Horas 50, 1, 016 é um dos oito Livros de Horas medievais que compõem o acervo histórico da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e um dos quatro que pertenceram à Casa do Infantado da Real Biblioteca Portuguesa. Devemos pontuar que os livros pertencentes à antiga Casa do Infantado são fontes importantes para os historiadores porque se destinavam à formação dos príncipes e das princesas da casa monarca portuguesa, o que ajuda a compreender a sua relevância espiritual para a vida da corte européia na Idade Média (Schwarcz, 2002).10

À semelhança dos outros livros que compunham a biblioteca real, os Livros de Horas da Casa do Infantado foram transferidos para o Brasil mais ou menos dois anos após a chegada da corte portuguesa à América, ou seja, por volta de 1810. Após a independência da sua antiga e principal colônia, esta coleção não foi recuperada pela família real e permaneceu no Rio de Janeiro tornando-se, posteriormente, acervo histórico dos cidadãos brasileiros.

Na tabela 1 apresentaremos as principais informações técnicas e tipográficas do Livro de Horas 50, 1, 016:

Tabela 1. Tabela com informações técnicas sobre o Livro de Horas 50, 1, 016. Fonte: elaborado pela autora

Local de confecção

Paris, França

Data de confecção

c. 1460

Uso

Uso de Paris

Fólios

160

Tipografia

Letras góticas

Tamanho

180 x 130mm

Línguas

Francesa, flamenga e latina

Encadernação

Moderna (século XX) com 27 cadernos

Material

Pergaminho

Iluminação

Mestre de Coetivy

Procedência

Real Biblioteca Portuguesa, Casa do Infantado

Acervo físico atual

Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

Cópia digital

http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/mss1212392/mss1212392.pdf

Também apresentaremos mais duas tabelas: uma informa os capítulos do livro na ordem de sua disposição original (Tabela 2) e a outra contém as temáticas das iluminuras presentes no códice (Tabela 3).11 Utilizaremos estas informações para fazer uma posterior análise.

Tabela 2. Tabela com informações dos capítulos do Livro de Horas 50, 1, 016. Fonte: elaborado pela autora

Capítulo

Língua

Fólios

Calendário

Francesa

1–12v

Horas da Cruz

Latina

13r – 16r

Horas do Espírito Santo

Latina

16v – 20v

Passagens dos Evangelhos

Latina

21r – 25r

Oração Obsecro te

Latina

25v – 27r

Oração Salve Regina

Latina

30v – 31v

Horas da Virgem

Latina

32r – 86v

Orações à Virgem

Latina

86v – 87v

Os 7 Salmos Penitenciais

Latina

88r – 99v

Litania Kyrie Eleison

Latina

99v

Litania de São Miguel

Latina

100r

Litania de São Marcelo

Latina

100v

Litania de Santa Genovesa

Latina

101v

Ofício dos Mortos

Latina

104r – 132r

Sufrágios dos santos

Latina com rubricas em língua francesa

145r – 153v

Oração contemporânea

Latina com rubricas em língua flamenga

154r – 155r

Kyrie e versets

Latina

156v – 157r

As 7 palavras do Cristo na cruz

Latina

157r – 159r

Oração em forma masculina

Latina

159r - 160r

Oração escrita em letra cursiva

Latina

160v

Tabela 3. Tabela com informações sobre as iluminuras do Livro de Horas 50, 1, 016. Fonte: elaborado pela autora.

Capítulos

Temas das iluminuras

Fólios

Horas da Cruz

Crucificação

13v

Horas do Espírito Santo

Pentecostes

16v

Horas da Virgem

Matinas

Laudes

Pimas

Tercias

Vésperas

Completas

Anunciação com 3 medalhões representando a vida da Virgem (nascimento, apresentação no templo e casamento)

Visitação

Natividade

Anúncio aos Pastores

Fuga para o Egito

Coroação da Virgem

32v

52r

62r

67r

76v

82r

Os 7 salmos penitenciais

O rei David

88r

Ofício do Mortos

Funeral

104r

Oração Obsecro te

Pietá

25v

Oração O intemerata

A Virgem com o menino Jesus e dois anjos

28v

Na Tabela 3 veremos tanto a disposição das iluminuras de pequeno e médio porte presentes no códice quanto a sua diversidade temática. Desde já destacamos a variedade iconográfica presente no capítulo mais importante de um Livro de Horas: o Ofício da Virgem. Além disso, também é necessário informar que o códice apresenta letras capitulares ornamentadas e as margens dos fólios contém motivos florais, folhagens e frutas com destaque para a utilização das cores azul, vermelha e dourada (proveniente das folhas de ouro).

6. PINTURAS EM PERGAMINHO: TEMAS, SIGNIFICADOS TEOLÓGICOS E CELEBRAÇÕES LITÚRGICAS

Podemos definir as imagens como um mecanismo de comunicação visual persuasivo e eficiente em diferentes contextos. Elas são capazes de captar a atenção do espectador e gerar sentimentos de empatia ou rejeição, alegria ou dor, identificação ou rejeição. Portanto, também são muito eficazes em gerar sentimentos de devoção e de piedade em um contexto religioso.

Da mesma forma, as imagens medievais funcionaram como suporte para a devoção cristã, especialmente a partir do século XII, onde não havia mais o medo de incentivo à idolatria que foi uma preocupação por séculos. Então, a espiritualidade da Baixa Idade Média não pode ser compreendida sem considerarmos a relação dos devotos com as imagens, sejam elas de grande tamanho e de adoração ou pequenas e portáteis como as iluminuras dos Livros de Horas. Segundo Avilés:

Los fieles solo podían suplicar a las imágenes para así solicitar el favor de los seres sagrados a los que representan. La imagen no se debe adorar en tanto que materia, sino que transfiere a su modelo del honor de la adoración, según la vieja teoría del transitus enunciada por Basilio de Cesarea (2021, p. 16).

A partir da leitura da citação acima vemos que, desde o Basílio de Cesareia (século IV), as imagens eram entendidas como objetos de transitus, ou seja, de transferência, de mudança entre a matéria e o mundo espiritual. Mas, esse conceito sofreu vários ataques ao longo do tempo e as imagens cristãs precisavam encontrar uma justificativa teológica que permitisse sua ampla divulgação.

No final da Idade Média, as imagens cristãs já não eram alvos de ataques iconoclastas, mas, ao contrário, eram estimuladas como fontes de grande devoção. As iluminuras são um dos melhores exemplos de imagens medievais que conhecemos hoje. Segundo Wieck (1997), elas podem ser definidas como “orações pintadas”, pois também são um veículo devocional para o fiel se conectar com Deus e com outros seres sagrados por meio de recursos visuais.

Em diálogo com a metodologia proposta por Eric Fernie, iniciaremos nossa análise sobre a aparência visual das iluminuras do Ms. 50, 1, 016. Desde já destacamos que elas apresentam algumas peculiaridades. Por exemplo: todos os temas foram representados a partir da sugestão de uma janela redonda que propunha realizar uma viagem ao mundo bíblico e sagrado saindo do mundo terreno do espectador e indo à realidade salvífica. Em outras palavras, as imagens serviam como suporte eficiente para a conexão entre os mundos terrestre e divino, entre o passado, o presente e o futuro. Ressaltamos que todas as cenas são emolduradas por margens repletas de flores, frutas e folhas e que os textos são iniciados com letras maiúsculas ornamentadas. As cores predominantes são o azul, o vermelho, o verde e o dourado.

Em nove das dez miniaturas de página completa (Figuras 1 a 10), a paisagem representada ao fundo da cena era proveniente da estética e espacialidade de uma cidade medieval com suas muralhas, castelos e rios ou, então, o interior de uma catedral gótica (ainda que os momentos bíblicos tenham ocorrido há milhares de anos e noutro continente). Nesse sentido, a arquitetura representada nas iluminuras funcionava como meio de conexão com a realidade do proprietário do livro. Por isso, as imagens faziam eco à construção arquitetônica das igrejas, à vida urbana, às paisagens bucólicas com camponeses ou, até mesmo, a um cemitério. Sua preocupação não era, necessariamente, com a realidade e com a representação fidedigna, mas sim com a união entre um mundo imaginado e outro visível e reconhecível como era notório na produção de imagens à época.

Figura 1. Crucificação. f. 13

Os temas da Crucificação e de Pentecostes (Figuras 1 e 2) foram os dois momentos bíblicos escolhidos para representar as Horas da Cruz e do Espírito Santo, respectivamente, como era comum nos outros Livros de Horas à época. A primeira cena (Figura 1) lembra-nos do sacrifício de Deus Filho para salvar toda a humanidade, o Deus que se fez homem por amor aos homens, segundo as Sagradas Escrituras.

Figura 2. Pentecostes. f. 16v

Do lado esquerdo do Cristo (do ponto de vista do espectador), vemos a Virgem e Santa Maria Madalena (identificadas por suas auréolas e gestos) que recebem o olhar de Jesus. Podemos inferir através da observação e da organização espacial desta imagem que as santas desempenhavam o papel de representar os convertidos e os seguidores de Jesus (seja no passado ou no presente medieval do proprietário do códice). De acordo com esta mesma lógica, do lado direito da imagem a partir do ponto de vista do observador, vemos os judeus que eram apontados como os responsáveis pela crucificação e morte de Cristo. Eles representavam, assim, as pessoas pecadoras que não conseguiam nem mudar de atitudes nem se arrepender de seus pecados mesmo tendo tido a oportunidade de conhecer o Salvador do mundo de acordo com o discurso antijudaico em voga no período. Há, ainda, a presença do acrônimo na placa de identificação na parte superior da cruz que diz INRI (Iēsus Nazarēnus, Rēx Iūdaeōrum). No português contemporâneo este acrônimo significa: Jesus Nazareno, rei dos judeus.

Destacamos ainda que a presença dos personagens judeus na cena da Crucificação não é comum tendo a maioria dos iluminadores optado por representar a caracterização usual dos guardas romanos neste episódio, já que eles foram os responsáveis pela prisão de Jesus de acordo com os Evangelhos. Assim, é interessante notar que a cruz foi o elemento visual utilizado para separar os dois lados simbólicos (santos x pecadores) em um mesmo - e pequeno - espaço geográfico. Do mesmo modo, podemos refletir que somente Cristo seria a figura capaz de conseguir unir - e salvar - estes dois mundos.

O tema de Pentecostes (Figura 2) foi interpretado, por muitos teólogos, como o primeiro encontro da igreja de Cristo, pois representa a união física e espiritual de várias pessoas de diferentes origens e linguagens em torno de um mesmo pensamento, sentimento e fé. Além disso, o encontro foi presidido pela Virgem Maria e incluiu os apóstolos que levaram a fé cristã aos diferentes continentes. Não é por acaso que o artífice medieval escolheu representar esta importante cena bíblica dentro de uma catedral de arquitetura gótica: a associação de Pentecostes com a necessidade de pregação para pessoas de diferentes origens sociais se tornou um elemento crucial do propósito das ordens mendicantes e do combate às heresias na Europa.

A importância da festa litúrgica de Pentecostes refere-se à ideia de unidade, de afirmação de uma Verdade e da consolidação da religião cristã, diferentemente do que eram pregados pelos grupos considerados heréticos. Neste sentido, a partir do diálogo entre a narrativa textual e imagética podemos inferir que a escolha dos temas bíblicos representados nos Livros de Horas ressoavam os ecos da realidade sensível, isto é, um contexto urbano de perseguição às heresias, de afirmação da ortodoxia, de pregação às comunidades e de fortalecimento da devoção laica.

A iluminura do Rei Davi (Figura 3) nos recorda do seu papel como o possível autor dos Sete Salmos Penitenciais. Nesta imagem, ele foi retratado com uma postura de humildade e em uma posição pacífica e reverente. Temos a oportunidade de observar o exato momento em que o rei tirou o seu chapéu em sinal de respeito e se ajoelhou diante de um anjo que parecia lhe oferecer a honra da inspiração divina para compor os Salmos com a ajuda da harpa, um instrumento musical valorizado no período.

Figura 3. O rei David, f. 88r

Davi veste roupas elegantes, dignas de um monarca medieval do Ocidente, e encontra-se dentro de sua câmara real (da qual podemos ver um castelo ao fundo, um lago, a grama e as montanhas pela janela). O mesmo tipo de tapete com elementos figurativos na cor dourada está presente na iluminura da Anunciação (Figura 5) e serve para destacar tanto a importância da figura representada assim como o ambiente que a acolheu. Convém destacar que em mundo marcado pela representação simbólica que dava luz e sentido às esferas naturais e sobrenaturais, cada elemento do mobiliário também comunicava e ajudava a contar a história sagrada de forma eficaz (Pastoureau, 2013). Por fim, recordamos que, ao lado do rei Salomão, o rei David foi o segundo monarca mais famoso na Idade Média e simbolizava o modelo do rei cristão por excelência. Por isso, ele era uma figura tão popular de devoção especialmente no repertório da corte palaciana que, por sua vez, seria o público alvo prioritário dos comerciantes dos Livros de Horas.

Na Figura 4 mudamos radicalmente de tema, saímos da esfera bíblica e de devoção para sermos transportados a um dos momentos cruciais das etapas da vida humana: a hora da morte. Na realidade, estamos diante da representação visual imaginada como exemplar para o fim da vida terrena: a realização dos últimos ritos que assegurariam o repouso eterno da alma no Paraíso. Assim, na iluminura vemos o cortejo fúnebre carregando a cruz processional que saiu da catedral (também de arquitetura gótica assim como na iluminura de Pentecostes) para o cemitério (que fazia parte do domínio sagrado da igreja). Os rituais fúnebres estavam sendo realizados na presença do padre, de seus assistentes e da comunidade. Destacamos que a presença de todos estes personagens era fundamental para a validade e eficácia do rito. Enquanto isso, o corpo, envolto em uma mortalha, foi enterrado em solo sagrado que era destinado apenas aos cristãos que morreram em consonância com a doutrina cristã.

Figura 4. Enterro. f. 4r

É interessante destacar que o tema iconográfico presente no Ofício dos Mortos era o mais passível de sofrer mudanças nas diferentes versões dos Livros de Horas. No caso do Ms. 50, 1, 16, o enterro no cemitério cristão foi a temática representada visualmente. Sem este ritual, não era possível chegar ao Céu e, portanto, todos os cristãos precisavam conhecer a sua importância assim como tentar garantir que o seu desejo (expresso por meio da escrita de testamentos) seria realizado por seus parentes após a morte.

A espiritualidade do século XV enfatizava a urgência em refletir sobre a preparação correta para conquistar uma boa morte e para o momento do transitus da alma, bem como fazer as orações pelas almas de conhecidos e parentes que já estavam no Purgatório e que precisavam de ajuda dos viventes para sair deste local de purgação o mais brevemente. Assim, enfatizamos que a própria presença do Ofício dos Mortos em um livro de devoção destinado aos leigos - e que anteriormente era de posse e uso exclusivo do clero - já era uma testemunha significativa sobre a importância destas práticas para a complexa “lógica da salvação” de acordo com o termo empregado por Baschet (2006).

Agora começaremos a análise do principal ofício dos Livros de Horas que, por sua vez, apresenta a maior quantidade de iluminuras de todo o códice: as Horas da Virgem. É relevante ressaltar que esta é a seção considerada mais importante de todos os Livros de Horas e, para muitos, o sucesso deste gênero literário se deve à emergência e êxito do culto mariano presente em toda a Europa, de forma especialmente popular, entre os séculos XIII a XV, devido, sobretudo, à atuação dos frades franciscanos (Walther, 2005; Wieck, 1997; Hamel, 2006; Harthan, 1977).

Na Figura 5 vemos a iluminura mais complexa e detalhada deste códice: a Anunciação (o tema mais importante da vida mariana e um dos principais da vida de Cristo). Nesta imagem, a cena principal é ladeada por três episódios da vida da Virgem que não foram descritos nos Evangelhos Canônicos, mas sim nos Apócrifos: o seu nascimento, a sua apresentação no templo e o seu casamento com São José. A presença destas temáticas nos Livros de Horas nos levam a alguns questionamentos: percebemos que esses temas - mesmo não sendo considerados oficiais pela Igreja - continuaram fazendo parte do imaginário cristão na Idade Média e, em último caso, poderiam ajudar na tentativa de humanização da Virgem e de Cristo perante à comunidade cristã por parte do clero, conforme defende Schmitt (2007). Neste sentido, podemos inferir que seria importante conhecer e lembrar das etapas do crescimento (tanto físico quanto espiritual) das figuras de referência do cristianismo. Do mesmo modo, a presença de temas apócrifos em Livros de Horas reforça uma certa autonomia na escolha dos temas, assim como pontua a falta de supervisão religiosa formal no momento de confecção dos códices conforme já discutimos nos tópicos anteriores.

Na iluminura da Anunciação (Figura 5) somos convidados a acompanhar o crescimento de Maria: desde o seu nascimento até ao momento mais importante da sua vida (o dia da Encarnação de Cristo estabelecido como data oficial no dia 25 de março, exatamente nove meses antes do Natal). Merece destaque o desenho do anjo, assim como a representação espacial da sala: arcos ogivais que lembram igrejas góticas, a cama vermelha, a janela, o vaso com lírios (um dos atributos marianos) e uma pequena pomba (representando o Espírito Santo) que voava cercada por raios de luz em direção à Maria simbolizando o momento da concepção de Cristo sem sexo carnal entre a Mãe de Deus e São José, mas sim através da ação da terceira pessoa da Santíssima Trindade: o Espírito Santo.

Figura 5. Anunciação. f. 32r

A próxima iluminura a ser analisada é a Visitação de Maria à sua prima Isabel (figura 6). Esta foi retratada como uma mulher mais velha e que já estava grávida do futuro profeta (um dos santos mais populares do cristianismo: São João Batista). Também é válido mencionar a presença da torre, da casa, da paisagem ao fundo e os gestos de carinho entre as mulheres em primeiro plano.

Figura 6. Visitação. f. 52r

A presença da cena da Visitação em Livros de Horas poderia ajudar os fiéis a lembrarem da possibilidade de uma gravidez milagrosa (ou da manifestação de outros milagres) desde que a pessoa tivesse fé e rogasse pela benção, pois Isabel até então era considerada estéril. Assim como também reforçava a mensagem da importância da visita pastoral por parte do clero, isto é, a necessidade dos padres visitarem e acolherem o seu rebanho, sobretudo, em momentos delicados e difíceis, sejam eles durante uma gravidez ou no leito de morte, por exemplo. Estamos falando de uma ideia de missão consoladora e de conforto espiritual. Contudo, na prática, este seria um exercício de cuidado e de atenção privilegiado a certos grupos sociais em um período, no qual faltavam padres para atender à demanda da comunidade, especialmente, no campo.

Com a observação da Figura 7 deixamos de pensar sobre a gravidez de Isabel para nos direcionarmos a outro grande tema: a Natividade, isto é, o novo tópico refere-se não apenas à gravidez de Maria, mas sim à família e à vida de Cristo encarnado. Para os devotos, conhecer um pouco mais da intimidade da família de Jesus, sobretudo sobre a sua humilde chegada ao mundo, seria novamente um reforço da humanidade do Salvador, assim como a percepção de que até o próprio Cristo precisou de carinho, amor, acolhimento e proteção para sobreviver e cumprir sua missão de vida. Atitudes estas que poderiam ser imitadas pelo público destinatário do livro por meio do acolhimento dos mais pobres, das viúvas e dos órfãos; pelo oferecimento de esmolas e pela participação leiga nas confrarias, por exemplo.

Figura 7. Natividade. f. 62r

Desde a popularização do sonho de Santa Brígida, no século XV, a representação do menino Jesus na manjedoura mudou. Ao olharmos esta iluminura, a criança está deitada no chão e não na já mencionada manjedoura (assim como a santa sonhou), o que não seria esperado, em um primeiro momento, devido à importância majestosa da figura do Cristo para a humanidade. É nesta cena também que os devotos tiveram a oportunidade de ver a primeira manifestação corpórea de Salvador e a confirmação da sua Encarnação após o “sim” de Maria, lembrado na iluminura da Anunciação (Figura 5).

Na Figura 7 São José foi representado como um homem muito mais velho que Maria (como era costume na produção artística medieval) e que segurava um cajado que deveria ajudá-lo na locomoção. Diferentemente de Maria que, mais uma vez, foi desenhada como uma donzela loira (à luz do fenótipo europeu na Idade Média). No processo de interação entre os personagens, os pais olham para a criança com amor e lhe prestam homenagem com gestos de respeito porque eles conhecem a verdadeira natureza de seu filho.

A ambientação da cena ocorre em um momento noturno, no qual é possível observar novamente a presença de paisagens montanhosas, árvores e de construções arquitetônicas longínquas, o que reforça a mensagem evangélica de que foi difícil encontrar um local para realizar o parto e que, tudo o que sobrou, foi um simples estábulo. Os raios dourados de luz que emergem da parte superior da imagem fazem alusão à manifestação divina no singelo espaço reservado para receber a segunda pessoa da Santíssima Trindade. Nota-se, por fim, o esforço do iluminador em criar um ambiente, no qual o nascimento do Cristo ocorreu sem grandes alardes, mas ao contrário, tentava-se demonstrar a humildade de sua figura perante à soberba humana (e, por que não, de Lúcifer).

Já a festa litúrgica do anúncio do nascimento de Cristo aos pastores (Figura 8) representa a importância de difundir a fé cristã a todas as populações. Podemos interpretar que ao contemplar esta iluminura, os devotos, assim como os humildes pastores representados na imagem, deveriam estar sempre atentos à mensagem dos seres angelicais (ou da Igreja). Esta cena também lembrava aos fiéis que a reconciliação dos homens com o seu Criador chegou para todos: ricos e pobres, sem distinção. Inclusive, os pastores seriam um dos atores sociais menos favorecidos desta sociedade, mas mesmo assim eles foram as figuras escolhidas para receber a Boa Nova e não os ricos comerciantes, nobres ou governantes que estavam no topo da pirâmide social.

Figura 8. Anúncio aos pastores. f. 67r

Na iluminura, observamos que os dois pastores estavam trabalhando e cuidando de seu rebanho à noite enquanto foram interrompidos pela manifestação angélica que chegou a cegar a um dos pastores (percebemos esta ação pelo ato do personagem em tentar cobrir os olhos durante um clarão repentino no Céu). Os personagens encontram-se próximos a um rio e, novamente, somos convidados a observar a liberdade criativa da representação visual de um castelo medieval ao fundo enquanto a cena principal ocorre em um ambiente bucólico.

O penúltimo tema representado no Ofício da Virgem do Livro de Horas 50, 1, 016 foi a fuga para o Egito (Figura 9). Nesta iluminura testemunhamos a representação visual de um dos primeiros obstáculos que o Cristo sofreu ao longo de toda a sua vida terrena, pois Ele teve que se esconder, ainda muito jovem, para sobreviver O mesmo pode ser dito dos seus pais que sempre estiveram prontos para protegê-lo das forças políticas e religiosas à época.

Figura 9. A fuga para o Egito. F 76v

Na imagem vemos Maria, com a criança em seus braços, sendo carregada por um humilde jumentinho e São José caminhando à frente. Ao fundo, vemos tanto a paisagem medieval que serviu de cenário para o desenrolar desta narrativa quanto presenciamos uma referência visual a uma antiga profecia registrada no Antigo Testamento. Ela dizia que a presença de Cristo faria com que todos os falsos ídolos caíssem sobre as colunas mostrando, assim, a sua origem falsa e diabólica. Na Figura 10 vemos justamente que a estátua de bronze sobre uma coluna estava sendo adorada por um camponês mais velho. Contudo, com a passagem do Cristo e a manifestação de sua natureza divina, a estátua se curva diante do Deus verdadeiro reforçando, assim, os preceitos da fé católica contra a idolatria, contra a heresia e contra as demais religiões. Ao mesmo tempo, demonstrou-se a negação da adoração de imagens sendo, apenas, permitida a adoração ou a veneração à figura que elas representavam, mas não ao objeto em si. Por fim, é importante destacar que as iluminuras da fuga para o Egito nem sempre representam esta profecia, mas quando o faziam ganhavam um novo matiz.

Figura 10. Coroação da Virgem. F. 82r

A última iluminura do ciclo iconográfico mariano presente no Ms. 50, 1, 016 enfatizava a importância da Virgem para a fé cristã (Figura 10). Nesta iluminura, Maria está sendo coroada, com a ajuda de um anjo, pelo próprio Deus Pai que está sentado em seu trono e segurando um orbe, o que sem dúvida é uma grande honra. Talvez a maior honra depois de ser escolhida para ser a mãe de Cristo segundo à teologia.

A cena foi representada em um ambiente diurno e murado, o que ajudou a transmitir a ideia de exclusividade. Assim, encerrou-se o ciclo de imagens que foi finalizado com o momento da glorificação de Maria e da afirmação de sua distinção diante dos demais, já que a importância dela para o sucesso e expansão da Igreja e do cristianismo é notória.

Ressaltamos, por fim, que em todas as iluminuras a Virgem foi representada com o mesmo manto azul, a cor de honra proveniente do lápis-lazúli, uma substância cara e de difícil acesso na Idade Média, pois vinha do continente asiático. Por isso, esta cor foi dedicada apenas às pinturas da Mãe de Deus. Da mesma forma, notamos outra constância nas imagens desse códice: ou a Virgem está no centro da cena ou está representada no lado esquerdo dele, um lugar muito especial onde o espectador ocidental primeiro dirige o seu olhar quando está lendo um livro ou o folheando.

Após realizarmos a análise das dez iluminuras de página inteira presentes no Livro de Horas 50,1,016, no próximo tópico iremos executar as demais etapas metodológicas propostas por Eric Fernie ao se trabalhar com fontes visuais: averiguar o contexto de produção da obra e seu impacto e recepção.

7. AS FUNÇÕES DO MS. 50, 1, 016

Como vimos, durante a Baixa Idade Média, o Ocidente viveu um período de laicização da religiosidade e da privatização das imagens. Foi a partir deste período que os leigos tiveram a oportunidade de adquirir livros de devoção, oratórios e gravuras que não ficavam mais restritos ao clero. Assim, as imagens tornaram-se testemunhas e suportes para a realização de práticas religiosas privadas. Por conseguinte, a utilização dos Livros de Horas neste novo contexto sociocultural também era uma oportunidade tanto para contemplar as imagens devocionais dos santos de devoção, por exemplo, quanto para meditar sobre a leitura ou audição dos textos que repetiam a história sagrada ou que apresentavam as orações e os ritos necessários para vivenciar uma vida mais santificada. Além disso, era uma oportunidade única dos fiéis acompanharem a celebração litúrgica, seja por meio da leitura do Ofícios dos Mortos, de trechos dos Evangelhos ou dos Salmos, por exemplo.

No cristianismo dos séculos XIV e XV, o fiel deseja ver Muitos queriam ter acesso às imagens ou a objetos de caráter místico. Nas palavras de Belting: “No terreno da piedade temporal, a aquisição de uma imagem devocional tornava-se um dever [….] os contempladores adquiriam não somente um instrumento para a devoção, mas também um certificado da disposição piedosa que estavam por alcançar” (2010, p. 523). Através dessa aproximação visual, é possível encontrar consolo e conforto em Cristo, em sua mãe e nos demais santos. Sobre o êxito dos livros devocionais para leigos é possível perceber que estes se adaptavam melhor às novas práticas de devoção que eram cada vez mais privadas e que dependiam menos do deslocamento do fiel à capela ou à catedral:

O saltério, o Livro de Horas tornaram-se assim, para muitos laicos, espécies de capelas portáteis, e suas iluminuras, transpondo os temas dos vitrais ou dos painéis dos retábulos, propuseram em torno do texto sagrado toda uma imaginária fervorosa, mais persuasiva do que as palavras latinas da oração, e de mais penetrante ação sobre a sensibilidade (Duby, 1979, p. 229).

A raridade de Livros de Horas sem imagens demonstra a grande importância dada a estas para a plena utilização e função do livro devocional. Era através das iluminuras que os fiéis poderiam contemplar - de maneira particular e privada - seus objetos de devoção, se identificar e se emocionar com as histórias bíblicas, marianas e hagiográficas. Com efeito, as imagens medievais devem ser entendidas como presença de uma realidade invisível que se tornava sensível aos olhos:

No contexto medieval, a imagem era a representação ou símbolo de algo que no presente só podia ser experimentado indiretamente, quer dizer, a presença de Deus no passado e no futuro da humanidade. Uma imagem compartilhava com seu contemplador um presente no qual só um pouco da atividade divina era visível. Alcançou, ao mesmo tempo, tanto o interior da experiência imediata de Deus na história passada, quanto, à frente, o tempo prometido que está por vir (Belting, 2010, p. 12).

As iluminuras, além de cumprirem uma função artística, também eram capazes de cumprir outras funções: suscitar a memória, a meditação e a devoção de seus espectadores. Os textos reforçavam a funcionalidade das iluminuras, ao mesmo tempo em que estas reafirmavam as mensagens escritas. Era uma via de mão dupla. E, cada vez mais, os manuscritos refletiam a crescente secularização da sociedade e de sua cultura. John Harthan afirma que quando imagens seculares apareciam nos Livros de Horas isto era um sinal da emancipação do artista em relação ao domínio clerical, da “liberdade criativa” deles e da disposição dos clientes as inovações (Harthan, 1977, p. 21). Assim, pouco a pouco, os leigos foram assumindo a função de mecenas, prática esta que teve seu auge durante o chamado Renascimento na Península Itálica e no norte europeu.

O advento dos Livro de Horas pode ser considerado como um elemento de união entre a religiosidade e as práticas artísticas, pois este gênero literário foi produzido em um momento de grandes transformações no mundo medieval, tais como o renascimento das cidades e do comércio; o surgimento de uma nova classe social, a burguesia e das universidades; a laicização do cristianismo; o surgimento das ordens mendicantes; a popularização do culto mariano; o aparecimento das primeiras oficinas de confecção de livros manuscritos, entre outros fatores. Por conterem representações do espaço, do tempo e dos valores básicos de organização da cultura cristã, os Livros de Horas constituem-se como um importante instrumento para a realização de práticas devocionais leigas da Europa dos séculos XIII a XV:

[… ] Sobre as páginas iluminadas dos livros ou nas jóias dos relicários, a imagem piedosa mostra-se sempre enquadrada por símbolo de arquitetura, que é o sinal abstrato de um santuário… Atesta que, para os devotos, esses objetos de piedade, que se adaptam melhor às novas formas modernas de devoção, representavam efetivamente a substituição, não só da capela onde se ia de tempos em tempos, a recolher-se, mas da catedral abandonada. No seio do movimento que, neste século, entregava o cristianismo ao povo laico, esse fantasma de igreja ergue-se como a lembrança das liturgias passadas, mas também como o símbolo duma religião interior, cujo novo santuário se tornou o coração do homem (Harthan, 1977, p. 21).

A espiritualidade cristã do final da Idade Média convidava os fiéis a meditar, continuamente, pela busca de uma boa morte e pelo descanso eterno da alma. É por isso que os livros piedosos eram tão importantes nesse contexto de crescente preocupação com o julgamento e a salvação individual. Muitas vezes, o Livro de Horas seria o único livro que um cristão possuiria. Isso indica a importância desse gênero de livro para a espiritualidade à época.

Com a aquisição do Livro de Horas 50,1,16, o fiel poderia ter um contato diário com os ofícios e recitar suas orações em forma de penitência. Desta forma, ele teria uma nova possibilidade de devoção privada e a repetição das orações visava fortalecê-lo e prepará-lo para a salvação. Portanto, a principal função deste Livros de Horas era auxiliar a devoção e piedade de seus comanditários em um contexto de crescente responsabilização individual dos méritos e deméritos das ações humanas no caminho rumo ao Paraíso.

Como defende Schmitt (2007, p. 88), a humanização e a historicização do Cristo, neste período, acompanhava o desejo por conhecer melhor a sua família, principalmente, a sua mãe que tornou-se a santa com maior número de igrejas, confrarias, imagens, autos, procissões, missas, orações e ex-votos dedicados à sua honra, seja em forma de súplica ou de agradecimento. Ao mesmo tempo em que deveriam suscitar a memória e a meditação sobre os temas da vida da Virgem, do Cristo e dos santos, as imagens deveriam tornar o invisível, tangível, como acontece nas iluminuras do Ms. 50, 1, 016. Portanto, a imagem cristã equivale-se a uma aparição do sagrado, a uma epifania:

A imagem medieval ‘presentifica’, sob as aparências do antropomorfo e do familiar, o invisível no visível, Deus no homem, o ausente no presente, o passado ou o futuro no atual. Ela reitera assim, à sua maneira, o mistério da Encarnação, pois dá presença, identidade, matéria e corpo àquilo que é transcendente e inacessível (2007, p. 595).

O fundo dourado usado para realçar as iluminuras, por exemplo, também era indício de uma transcendência além de sua realidade sensível que além de uma função estética também exercia uma função simbólica, pois ajudava a reiterar o mistério da Encarnação (Lc 1), o Deus que se fez homem, o Logos que se fez carne (Jo 1, 14). Portanto, as imagens medievais não são uma mera representação, mas uma presentificação de outra realidade:

Entretanto, nem o pintor e o escultor pensam em imitar as realidades que os cercam, como as percebem com seus olhos. Eles servem-se desses objetos como fórmulas para evocar uma outra realidade, essencialmente diferente e, para dizer a verdade, invisível. A “arte” medieval não se encontra submetida à mimesis dos Antigos […] As formas figurativas e as cores são, antes de tudo, concebidas como indícios de realidades invisíveis que transcendem as possibilidades do olhar As imagens não saberiam ‘representar’ – no sentido habitual do termo – essas realidades. Poderiam no máximo tentar “torná-las presentes”, “presentificá-las”. A imagem medieval pode, desse modo, ser comparada a uma aparição, a uma epifania (Schmitt, 2007, p. 14).

Portanto, a experiência artística cristã à época deveria estabelecer uma conexão entre as figuras representadas e o fiel, favorecendo a comunicação com o outro mundo e uma aproximação, tornando visível a figura do Cristo, da Virgem, dos santos ou da Jerusalém celeste. Assim, as iluminuras do códice francês que foram estudadas eram importantes tanto para a apreciação estética quanto para as práticas sociais em torno do universo do sagrado.

Após refletirmos sobre as principais funções devocionais dos Livros de Horas, chegou a vez de abordarmos os usos do códice 50, 1, 016.

8. OS POSSÍVEIS USOS DO MS. 50, 1, 016

A presença de dois tipos de caligrafia e anotações nas margens do códice 50, 1, 016 indica que ele já teve proprietários diferentes e que o livro poderia ser usado com frequência. A presença da frase latina “Ora pro me” em algumas margens dos fólios atesta a importância dada ao códice como suporte devocional e como auxílio para outras práticas como o Sacramento da Confissão. Destacamos também a presença de santos e festas litúrgicas francesas no Calendário do Livro de Horas, o que confirma que a encomenda ou a destinação deste códice era para um devoto francês, ou seja, os monarcas portugueses não foram os primeiros proprietários deste livro. Na tabela 4 podemos observar alguns santos franceses presentes no Calendário:

Tabela 4. Santos franceses no calendário do Livro de Horas 50, 1, 016. Fonte: elaborado pela autora

Festa litúrgica

Santo

03 de janeiro

Santa Genoveva, patrona de Paris

28 de maio

São Germano de Paris

10 de junho

Santo Landerico, bispo de Paris

25 de agosto

São Luís, rei da França

7 de setembro

Santo Clodoaldo, filho do rei Clodomiro de Orleães (dinastia merovíngia)

9 de outubro

São Dinis de Paris

Ressaltamos que a identificação do iluminador do códice, Mestre de Coëtivy, vem do estudo realizado por François de Avril a convite de Vera Lucia Miranda Faillace, chefe do setor de manuscritos da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Segundo Avril (2016, p. 13), as doze miniaturas deste códice foram executadas em Paris por volta de 1460 e são imagens de ótima qualidade inda assim, o especialista menciona que também há indícios de que essas miniaturas possam ter sido feitas por outro iluminador na França, já que são muito parecidas com os manuscritos 2685 da Bibliothèque Sainte–Geneviève, em Paris, e do Ms. Stowe 25 da Biblioteca Britânica em Londres.

Por ora, vamos nos ater à primeira hipótese de identificação que atribui o traço da obra ao Mestre de Coëtivy. Desde já é importante destacar que este é um nome genérico que se convencionou usar para o artista em questão por conta do seu primeiro trabalho realizado. A proposta da sua identificação com o pintor Colin d'Amiens, reconhecido por muitos especialistas como um dos melhores pintores da Paris do século XV, é hoje aceito por um grande número de historiadores da arte sem contudo ser unânime. Sua obra também apresenta reminiscências da arte flamenga, em voga à época, em relação ao uso das cores e das formas.

O contexto de produção do códice 50, 1, 016 foi marcado pela renovação do meio artístico parisiense, em plena recomposição após a Guerra dos Cem Anos entre França e Inglaterra. E, através da análise das imagens e dos textos do manuscrito, percebemos a ênfase na devoção mariana e nos elementos de conexão com a realidade social da corte parisiense seja tanto pela presença de santos franceses no calendário quanto pelas orações escritas em lingua francesa, pelos trajes ou pela arquitetura gótica da catedral nas iluminuras.

Os santos franceses que foram escolhidos como figuras de celebração tanto litúrgica quanto devocional no códice 50, 1, 16 foram seis: Santa Genoveva; São Germano de Paris; Santo Landerico, bispo de Paris; São Luís, rei da França; Santo Clodoaldo e São Dinis de Paris. Aqui temos um conjunto interessante de testemunhos da fé cristã em território franco. Todos e cada um são lembrados por episódios específicos de sua vida e que deveriam ser rememorados e celebrados com entusiasmo pela diocese parisiense. É relevante destacar que uma característica em comum - e primordial - na narrativa destes santos é o seu papel de liderança cristã em contextos conflituosos e inseguros, onde tanto a fé ou os limites do território geográfico passavam por reivindicações e estavam sendo postos à prova.

Assim, podemos inferir que o pano de fundo instável vivido pelos santos citados no parágrafo anterior era semelhante ao contexto vivido tanto pelos artistas que trabalham no ateliê que realizou a confecção do códice 50,1,016 quanto dos ricos comanditários que patrocinaram a produção do manuscrito. Neste último caso, estamos falando especificamente da já citada Guerra dos 100 anos pela disputa da sucessão real do trono francês e do longo período de instabilidade que a caracterizou.

Vamos a alguns dos santos lembrados no calendário do Ms 50,1,016: a única santa do sexo feminimo destacada foi Genoveva (c. 420 - c.500), uma figura importante no cristianismo da Alta Idade Média e, posteriormente, escolhida para ser a patrona da cidade de Paris. Ou seja, ela era uma das figuras mais importantes do calendário litúrgico. A legenda de Santa Genoveva nos conta que ela teria nascido em Nanterre e que muito jovem escolheu a vida assética e consagrada. Também foi uma das responsáveis por fundar o primeiro convento feminino de Paris e teria sido essencial na luta contra a fome e as invasões de Átila, o rei dos hunos. Assim, sua história nos oferece um exemplo palpável da força e da liderança feminina em um contexto de turbulências e que poderia ser útil como mecanismo de incentivo e de fortalecimento da fé, especialmente, das devotas no século XV. Mais do que isso, Genoveva se tornou símbolo de união e de estabilidade merecendo, assim, ser escolhida como a padroeira da cidade de Paris.

Também devemos destacar a importância da devoção feminina na Baixa Idade Média, especialmente, em relação aos usos dos Livros de Horas. Além disso, a humanização dos santos foi um dos recursos utilizados - assim como no caso de Santa Genoveva - como meio de conexão palpável entre o mundo urbano da Paris medieval com o sagrado. Da mesma forma, a representação de elementos arquitetônicos franceses reconhecíveis a olho nu (como os castelos e as catedrais) poderia ajudar o fiel a se localizar espacial e individualmente na trajetória em busca da sua salvação final. É notório o poder que simples elementos do cotidiano poderiam ter na tentativa de familiarizar narrativas há muito ouvidas e decoradas por meio das audições das missas e dos sermões. Contudo, a visualização direta e privada de elementos espaciais, do vestuário e de práticas provenientes do mundo do trabalho ou do ócio, ajudaria a presentificar estas histórias e a torná-las mais reais, mais próximas e humanas aos devotos parisienses que teriam o privilégio de possuir um Livro de Horas.

Por fim, devemos pontuar que a constatação da origem francesa do códice nos leva a outras indagações que precisam ser desenvolvidas em artigos e pesquisas futuras: como esse livro, inicialmente destinado a um devoto francês, chegou às mãos dos monarcas portugueses? Teria sido uma troca, um presente? De quem? De qualquer forma, o uso devocional do códice para os infantes portugueses se manteria benéfico - do ponto de vista religioso - porque a maior parte dos textos foi escrito em latim (língua oficial da Igreja) e os temas das principais iluminuras eram de conhecimento geral da comunidade cristã.

9. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos que a partir do século XIII os leigos adotaram a prática monástica de ter imagens e livros devocionais, como os Livros de Horas. A partir de então, a espiritualidade laica combinava a recitação de orações com a apreciação de imagens privadas e portáteis, possivelmente leituras e a meditação silenciosa. Estimulados pela Igreja, sobretudo pelas ordens mendicantes, as imagens materiais deveriam auxiliar o fiel a se identificar e se comover com as passagens dos evangelhos, sobre a infância de Cristo, a vida de sua mãe e dos demais santos.

As imagens foram consideradas tão eficazes quanto os textos para reforçar os ensinamentos da doutrina cristã, para lembrar a história sagrada e para e para estimular a devoção e, até mesmo, uma mudança sincera de comportamento. Enquanto as imagens fossem contempladas, era esperado que o fiel pudesse internalizar os ensinamentos e as boas ações do Cristo e repeti-las. Com a aquisição de imagens privadas, o fiel teria a possibilidade de um contato mais íntimo com as figuras representadas.

Assim, o ponto chave para compreender a estreita relação entre as produções artísticas e a espiritualidade cristã no final do século XV é a humanização. Como vimos, os Livros de Horas eram considerados suportes devocionais altamente eficientes para ajudar os fiéis da nobreza a conhecer, lembrar e identificar-se com os temas representados. Vimos que ao refletirem sobre a vida do Cristo, da Virgem e dos demais santos, os devotos teriam elementos que os ajudassem a conectar a história sagrada com a suas vidas cotidianas. Além disso, os temas retratados serviam como mensagens de esperança e de incentivo diante dos desafios da vida repleta de tentações conforme era pregado pela Igreja Católica.

Também vimos que elementos das práticas litúrgicas, devocionais e sociais parisienses (aqui nos referimos às festas litúrgicas, às orações, aos atos de socialização da corte, às práticas de trabalho pastoris além dos célebres momentos bíblicos ou hagiográficos) foram representados tanto textual quanto visualmente no códice 50, 1, 16. Neste sentido, a pluralidade de temas e de práticas abordadas em um único objeto devocional destaca a importância dos Livros de Horas como uma complexa fonte de estudo para os historiadores que desejam se aprofundar no recorte temporal da Baixa Idade Média.

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1 Mail: marquesdesouzap@gmail.com. Mestra em História Social pelo Programa de Pós- Graduação em História Social (PPGHIS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Largo do São Francisco, 1 - Centro, Rio de Janeiro (Rj), 20051-070, Brazil, Rio de Janeiro.

2 Numeração utilizada como ferramenta de identificação e catalogação do códice manuscrito pela Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

3 Ordem mendicante fundada por Francisco de Assis (1182-1226) em 1209 e reconhecida pelo Papa Inocêncio III. Esta fraternidade pretendia que seus membros vivessem a pobreza e a humildade, sem apego aos bens materiais sejam eles individuais ou coletivos a exemplo da vida de Cristo e dos Apóstolos. Francisco propunha uma profunda devoção ao Cristo que deveria ser venerado em sua humilhação e, especialmente, lembrado pelos sofrimentos que passou durante sua Paixão. A Ordem dos Irmãos Menores sofreu uma rápida expansão na cristandade latina.

4 Segunda ordem mendicante, depois dos franciscanos, a dos Irmãos Pregadores foi fundada por Domingos de Gusmão (1170-1121). Domingos era um cônego regular que decidiu consagrar-se totalmente a uma vida apostólica. A pequena comunidade de pregadores, instalada inicialmente em Toulouse, logo foi reconhecida pelo Papa. No ano de morte de seu fundador, a Ordem dos Pregadores estava em crescente desenvolvimento, ao ponto de quase todas as grandes cidades da cristandade latina terem um convento dominicano.

5 O caráter didático do exemplum deve ser pontuado, pois ele era utilizado como instrumento de ensino e edificação da doutrina católica romana, sobretudo, em ambiente urbano. Era uma lição moral e religiosa assim como um elemento retórico utilizado para fisgar e comover o auditório, isto é, adaptar o discurso para convencer a audiência. Portanto, a retórica, a persuasão e a memória estavam estritamente relacionadas a este processo. Estas pequenas histórias edificantes ofereciam chaves de ensinamento da ortodoxia através de recursos comoventes e eram, ao mesmo tempo, um método e um gênero literário.

6 O termo popular refere-se à grande produção e demanda destes manuscritos se comparado a outros gêneros de livros produzidos no mesmo período.

7 As horas canônicas adotadas na Idade Média eram: Matinas: 00:00; Laudes: 03:00; Primas: 06:00; Tercias: 09:00; Sextas: 12:00; Nonas: 15:00; Vésperas: 18:00; Completas: 21:00.

8 Do latim breviarium: abreviatura, abreviação. Livro litúrgico destinado a monges e monjas e que reúne diversas orações correspondentes a cada hora canônica. Assim como o Missal, o Breviário contém todas as orações do ano religioso. Além de um calendário, dos salmos, hinos, fragmentos da Bíblia e fórmulas de oração e bênção.

9Harthan (1977) sugere que a variação dos horários das estações (como o inverno e o verão) e as diferentes práticas adotadas nos monastérios demonstram que o momento de recitação de cada hora canônica é menos rígido do que aparenta.

10 A Casa do Infantado foi criada em 1654 por D. João IV e era uma organização patrimonial que possuía obras destinadas à formação dos infantes portugueses. A transferência do acervo da Real Biblioteca para o Rio de Janeiro começou a ser feita em 1810.

11 Como fonte de consulta para a elaboração destas tabelas, destacamos o catálogo publicado por Vera Faillace em 2016.