Specula Revista de Humanidades y Espiritualidad

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A EXEMPLARIDADE DA JUSTIÇA DIVINA NO ALÉM NA VERSÃO PORTUGUESA VISÃO DE TÚNDALO

THE EXEMPLARITY OF DIVINE JUSTICE IN BEHIND IN THE PORTUGUESE VERSION VISION OF TUNDAL

Solange Pereira Oliveira1

Fechas de recepción y aceptación: 14 de febrero de 2024 y 23 de abril de 2024

DOI: https://doi.org/specula_2024.10.1131

Resumo: No imaginário da sociedade cristã medieval a justiça terrena não era concebida como uma ação desvinculada da justiça divina, pois coexistiam tanto no mundo dos vivos quanto no mundo dos mortos. No entanto, segundo os discursos clericais, a verdadeira justiça era aquela realizada por Deus no pós-morte, que determina as sentenças destinadas às almas no Além. Este é estruturado em espaços associados às condutas morais cristãs: o Inferno, Purgatório e Paraíso. As narrativas visionárias se tornaram um instrumento essencial na divulgação dessa retórica cristã ao dar uma projeção visual de um Deus juiz que pune, salva e recompensa os eleitos e os danados, de acordo com os seus merecimentos, no post-mortem. Neste artigo, analisamos as descrições da justiça divina sobre as almas nos lugares do Além na versão portuguesa da Visão de Túndalo como elementos de exemplaridade que visam instruir e aconselhar a sociedade medieval sobre as ações comportamentais deste mundo, levando ao caminho da salvação ou da danação. Discutimos também um panorama sobre as aplicações da justiça realizada no plano terreno por meio de ações de monarcas portugueses da Dinastia de Avis.

Palavras-chave: Justiça divina, Além Medieval, Visão de Túndalo, Almas, Salvação.

Abstract: In the imagination of medieval Christian society, earthly justice was not conceived as an action disconnected from divine justice, they coexisted in both the world of the living and the world of the dead. However, according to clerical discourses, God carried out true justice in the afterlife, which determines the sentences destined for souls in the Beyond structured in spaces associated with Christian moral conduct, Hell, Purgatory and Paradise. Visionary narratives became an essential instrument in the dissemination of this Christian rhetoric by providing a visual projection of a judging God who punishes, saves and rewards the elect and the damned, according to their merits, in the post-mortem. In this article, we analyse the descriptions of divine justice over souls in the places of the Afterlife in the Portuguese version of the Tundal Vision as exemplary elements that aim to instruct and advise medieval society on the behavioural actions of this world that lead to the path of salvation or damnation. An overview of the applications of justice carried out on earth through the Portuguese king's actions of the Avis dynasty is also mentioned.

Keywords: Divine Justice, Medieval Beyond, Vision of Tundal, Souls, Salvation.

1. INTRODUÇÃO

Quando falamos de justiça na Idade Média é importante ressaltarmos as implicações deste termo em uma sociedade eminentemente cristã. De certo, neste período histórico, a ideia de justiça transcende as leis do mundo dos vivos, pois existe uma crença fundamental, difundida pelos clérigos, que a verdadeira justiça é regida por Deus no Além-Túmulo.

Contudo, no pensamento medieval, as práticas da justiça que permeavam a vida social se misturavam com as leis terrenas e as leis divinas. Como exemplo, a justiça secular não deixava de se envolver nos assuntos espirituais na medida em que as faltas e os crimes praticados não estavam restritos só contra a humanidade, mas também contra Deus.

É na Idade Média do século XII que a preocupação com a justiça ficou bastante em evidência, seja esta espiritual ou temporal, a qual se prolongou ao menos até o século XV. Nesta época, a imagem de um rei justo com as qualidades dos ideais cristãos cresce tanto quando as suas ingerências em assuntos espirituais, antes sob a administração exclusiva da Igreja. O fato é que a prática da justiça régia se misturava com a secular e espiritual, porque no imaginário medieval a corte terrena de um rei deveria ser a semelhança e a imagem de uma corte celeste.

Da mesma forma, a Igreja, neste espaço cronológico, reforça a retórica de uma concepção de justiça baseada nos princípios morais cristãos, utilizando-se de vários instrumentos de divulgação, desde os escritos aos orais, para a reflexão dos vivos e, consequentemente, para a sua aspiração à salvação. Desta forma, divulgava-se a crença de que a verdadeira justiça se encontrava para além desse mundo, pois, aqui embaixo, ela seria ultrajada, violada, desigual e passível de erros, enquanto no mundo dos mortos o que se veria são as correções das injustiças daqui de baixo.

No entanto, não podemos cogitar em pensar que na Idade Média os dois tipos de justiças, a terrena e do Além, fossem independentes uma da outra. Basta pensarmos no momento de efervescência escatológica, quando as realidades judiciais terrenas se entrecruzam com as realidades judiciais divinas no Além-Túmulo onde as almas seriam sentenciadas conforme as suas obras enquanto estavam ligadas ao corpo.

O tema da justiça divina tem uma importância singular nos ensinamentos morais dos membros eclesiásticos para a salvação das almas ao se constituir como um dos elementos de persuasão para a conversão cristã. No intuito de intensificar a crença da existência de um julgamento divino, já tão mencionado nas Escrituras, os pregadores valeram-se de um instrumento bem persuasivo para mostrar de forma mais visível possível os testemunhos que garantiriam a veracidade de um Deus que aplicaria uma sentença justa na realidade invisível do pós-morte. Este instrumento são os relatos de Viagens ao Além, um dos principais exemplos de narrativas em que os homens e mulheres medievais conheciam as experiências de viajantes que cumpriam um caminho no Além-Túmulo para a purificação da alma ou do corpo como forma de obter a salvação.

Deste modo, as narrativas sobre a viagem da alma ao Além tiveram uma ampla circulação durante a Idade Média, sendo os mosteiros os principais centros de produção e divulgação desse tipo de relato, que informa sobre as experiências de viajantes, os quais empreenderam uma jornada às regiões onde residem os mortos. E, para além disso, transmitia uma mensagem vinda do mundo espiritual que servia como um guia de ação para o público receptor desse tipo de relato. É no século XII que as viagens ao Além conheceram o seu auge, isto é, a sua idade de ouro, pela riqueza de várias produções de relatos de visões que descrevem as viagens da alma no post-mortem (Delumeau, 2003).

Destacamos alguns elementos que constituem as características bem peculiares sobre a viagem ao Além, conforme Carozzi (1994, p. 5):

1) O protagonista viajante apresenta um estado de quase morte, isto, é, fica aparentemente morto; 2) Há a separação da alma do corpo; 3) A alma viaja ao Além, seguindo um itinerário nos lugares onde habitavam os mortos sob a condução de um guia; 4) O protagonista testemunha as características do Além e, às vezes, o próprio tem a necessidade de expiar os seus pecados; 5) Há o retorno da alma ao corpo.

Neste trabalho, utilizaremos como um exemplo de viagem ao Além medieval a obra Visão de Túndalo., que trata da experiência da alma de um nobre cavaleiro da Irlanda chamado Túndalo. Na companhia de um guia espiritual, o anjo, o protagonista da narrativa faz-se um percurso pelos espaços do Além. Este se encontra dividido em Inferno, Purgatório e Paraíso, lugares onde serão reveladas, respectivamente, as penas e as glórias das almas. O objetivo de mostrar-lhe as ações as quais as almas são submetidas no Além se deve à sua condição terrena, isto é, o cavaleiro tinha todas as qualidades de um pecador que praticou muitas maldades, sendo necessária a transformação desse comportamento para a salvação da sua alma. No entanto, essa personagem, além de testemunhar os lugares onde “habitam” as almas depois da morte, pôde experimentar as ações que se passavam no mundo do Além, algo de fundamental importância para a sua transformação espiritual. Após constatar e conhecer, através da experiência que teve no pós-morte, a alma do cavaleiro reencontra o seu corpo e ele se torna um modelo de bom comportamento, conforme os ensinamentos cristãos, ao assimilar a aprendizagem do seu guia, o anjo, ao longo do percurso no Inferno, Purgatório e Paraíso. Além disso, o cavaleiro narra a sua experiência a outras pessoas para que sigam o seu exemplo de regeneração de comportamento, vivendo uma vida santa, e que, assim, possam alcançar a salvação (Pereira, 1895).

A obra conheceu na Europa Medieval uma imensa popularidade, comprovada pela quantidade de versões latinas e outras traduções vernáculas em diferentes línguas europeias que circularam entre os séculos XII e XVI, mostrando uma importância significativa na sua transmissão (Carozzi, 1981)2. Em português há duas versões da Visão de Túndalo, os códices 244 e 2663. Utilizamos como referência neste artigo a versão portuguesa do manuscrito (códice 244), mais precisamente a edição impressa em português arcaico, que foi publicada em 1895 pelo editor F.M. Esteves Pereira pela Revista Lusitana - Arquivo de Estudos Philológicos e Etnológicos relativos a Portugal. O manuscrito está localizado na Biblioteca Nacional de Lisboa e foi traduzido pelo Frei Zacarias de Payopelle, monge cisterciense do Real Mosteiro de Alcobaça de Portugal4.

Em relação à tradução, ainda não se sabe exatamente a data em que foi feita a versão portuguesa. Conforme Esteves Pereira (1985, p. 101), através da linguagem do manuscrito, constata-se que não é nem anterior ao século XIII, nem posterior ao século XV. O consenso é que a obra foi traduzida em fins do século XIV e início do século XV. Da mesma forma, ainda são poucos os estudos críticos sobre de onde deriva esta tradução portuguesa da Visão de Túndalo. Contamos apenas com poucas informações de autores que fazem conjecturas, sem muitos detalhes, que possam demonstrar realmente qual texto serviu de arquétipo para essa versão. De acordo com Lewis (1997), é provável que o manuscrito português esteja relacionado com a redação mais antiga do manuscrito da Catedral de Toledo (Ms 99-37), acredita ser possível que a versão portuguesa do manuscrito (códice 244) da Biblioteca Nacional de Lisboa seja uma ramificação desta. Conforme já dito, a narrativa circulou em Portugal de forma oral e escrita no final do século XIV e início do século XV.

A proposta deste artigo tem como objetivo abordar os discursos morais da exemplaridade das descrições da justiça divina sobre as almas nos lugares do Além na versão portuguesa da Visão de Túndalo. E, ainda na análise desta temática, apresentamos um panorama sobre as ingerências dos monarcas de Avis em relação à justiça no momento da circulação do documento de estudo utilizado aqui em Portugal.

Para alcançar os nossos objetivos no artigo, foram feitos levantamentos bibliográficos na historiografia nacional e internacional que tratam tanto da justiça divina quanto da justiça régia na Dinastia de Avis, que, no entanto, não é o centro do artigo, o qual versa prioritariamente sobre a justiça divina na obra Visão de Túndalo. Desse modo, os trabalhos de Luís Miguel Duarte (1993, 2005), Armando Luís Carvalho Homem (2009), José Marques (1990,1994), Beatris dos Santos Gonçalves (2010) e Maria de Lurdes Rosa (2005, 2014) nortearam as reflexões gerais de justiça, atuações políticas e religiosas dos reis avisinos e nas ordenações régias. Ressalvamos que a nossa intencionalidade se centra nas relações contextuais e não no aprofundamento destas questões, que ficarão para um outro momento oportuno.

Por fim, retomamos a discussão sobre a justiça divina no mundo dos mortos com ênfase na sua aplicabilidade nos lugares do Inferno, Purgatório e Paraíso como elementos exemplares para a conversão cristã e, consequentemente, para a salvação das almas. O nosso objetivo central é contribuir com a análise da justiça divina no códice 244 da Visão de Túndalo, tendo como principal referencial as contribuições de Yolande de Pontfarcy, que realizou estudos sobre a importância da justiça divina na fonte latina.

2. ALGUNS ELEMENTOS DA JUSTIÇA RÉGIA NA DINASTIA DE AVIS

Convém referir que foi no âmbito cronológico da circulação da Visão de Túndalo em Portugal que, nesse território, os monarcas de Avis reafirmavam o predomínio do poder real. Dentre um conjunto de elementos que contribuíram para essa afirmação, destaca-se a preocupação com a justiça que se caracteriza como um dos pilares ideais que se espera de um rei, cuja imagem que se faça notar é a de um rei justo.

De forma geral, aliado à justiça, a paz completa os dois grandes ideais que se espera que o rei faça predominar em seu reino. Termos estes que têm uma conotação escatológica ao representar, segundo Le Goff (2002, p. 408), “o fim para a qual deve tender a humanidade de maneira a apresentar-se no Juízo Final em condições de ser salva”.

Como representante de Deus no seu reino, o bom rei tinha que cumprir os seus deveres para com Ele, que o pusera no seu cargo e para com o Povo (conjunto de súditos no reino). “Estava submetido ao direito divino, ao direito natural e às leis o Reino, mesmo as que ele próprio fizera” (Marques, 1990). Levando-se em conta que aqui no plano terrestre a figura do rei e do seu reino é a imagem da corte celeste de Deus, no âmbito da aplicação da justiça, os monarcas de Avis se incumbem ao dever de exercer essa função através de uma legitimação que não se dissocia da justiça e misericórdia divinas.

O tema relativo à justiça era considerado um dos mais importantes ou a mais nobre missão de um rei. Como exemplo, o rei D. Duarte (1433-1438) se dedicava, integralmente, pela manhã, da segunda-feira à quinta-feira, aos assuntos da justiça. Nas manhãs de sexta, ocupava-se com os assuntos mais internos da casa real e sábado desempenhava outras de “suas obrigações ‘sagradas’: dar audiência pública, abrir um espaço de acesso a todos, mostrar-se próximo dos súditos” (Duarte, 2005, p. 174). Pedro I (1357-1367), ainda da Dinastia de Borgonha, mas muito importante de ser mencionado, por sua forte ligação com a justiça, ficou conhecido como o “rei justiceiro” e foi exaltado como tal por não hesitar em garantir a lei, seja por decisões às vezes consideradas cruéis que provocavam o medo (Duarte, 1993, p. 95). Estas ações corroboravam para a legitimação do poder régio que através destas ações reforçava-se a imagem propagandística de um soberano que cumpre o seu dever funcional de justiça real cristã.

É neste sentido que os reis de Avis não hesitaram em aplicar a justiça sobre aqueles que praticaram o mal contra a humanidade ou contra Deus, agindo dessa forma tanto na esfera temporal quanto na espiritual. O que não deixou de gerar conflitos quanto à questão da justiça canônica, pois havia uma clara interferência régia em assuntos espirituais, principalmente na matéria sobre os pecados. “A tônica que se coloca sobre a missão régia é da erradicação do pecado, seja ele a luxúria, a usura, o adultério, a sodomia, o falso testemunho ou a blasfêmia” (Homem, 2009, p. 2).

No caso específico do adultério e da sodomia, é importante ressaltar que estes têm uma complexidade quanto a jurisdição entre os dois poderes, monárquico e eclesiástico, o que acabou gerando tensões entre ambos ao se enquadrarem como delitos/pecados referente a moral religiosa, mas também criminal. A justiça régia, em conformidade com a moralidade cristã, criou leis de proibição destas práticas em clara interferência a assuntos que a priori era do domínio entrando em choque com os eclesiásticos.

Durante o reinado de D. Afonso V, muitas foram as queixas do clero contra esse monarca que frequentemente se envolvia nos assuntos de domínios clericais. As Ordenações Afonsinas, conjunto de leis que tenta regular e uniformizar as competências régias, acabaram gerando alguns descontentamentos clericais, principalmente no Livro II que trata do direito eclesiástico, isto é, das relações entre a Igreja e a Coroa5.

Outro aspecto dessa Ordenação foi a criminalização dos pecados. Conhece-se que alguns representantes clericais, entre estes se encontra o bispo D. João Manuel que reclamou da justiça secular régia, conforme Gomes (2009, p. 164) “por se imiscuírem na jurisdição canônica ou atentarem contra os seus direitos e imunidades, foros, isenções e determinação em matéria de excomunhão”.

Para exemplo dessa interferência, D. Afonso V ordenou que se listassem os nomes dos súditos com mais de 10 anos que não cumprissem a confissão obrigatória, nos Domingos da Páscoa, fossem presos pelos juízes régios só a tempo de se confessarem na cadeia. Por outro lado, aqueles que cometiam o pecado da blasfêmia contra Deus, contra os santos e contra a Virgem Maria cometeriam um crime e, portanto, responderiam diante da justiça régia, que os julgariam diante deste ato faltoso:

A interferência do rei em matéria religiosa não era, de qualquer modo, totalmente inédita, tanto mais que a concepção da personna regis como predestinada por Deus lhe conferia e associava uma ideia de sacralidade socialmente percepcionada que é própria, na remota tradição indo-europeia e mediterrânea, das entidades e funções soberanas. (Gomes, 2009, p. 165)

Devemos lembrar que essa interferência não é uma particularidade nesse reinado. Desde o reinado de D. João I (1383/85-1433) que se verificam as ingerências régias no campo espiritual e, consequentemente, os atritos entre os monarcas de Avis e os clérigos. Para uma exemplificação breve, tanto naquele reinado como de seu filho D. Duarte ficaram marcados pelos intensos conflitos com os clérigos, que reagiram, na intervenção destes monarcas na administração dos testamentos. Segundo Rosa (2014, p. 244), os conflitos contra o clero, nesses dois reinados, são centrais na questão da legitimidade da Coroa em intervir no campo das vontades dos defuntos. No entanto, sempre havia um equilíbrio de negociação entre o poder eclesiástico e o poder régio.

À época de publicação das Ordenações Afonsinas, há muito que a lei do reino prevalecia sobre o direito canônico em termos gerais. Porém, este continuava a funcionar no reino, e não só para o foro próprio do clero”, como o monarca, a exemplo de D. Afonso, que vai legislar com a mesma preocupação em matéria das almas dos súditos (Rosa, 2005).

Desta maneira, os pecados e a criminalização destes passaram não somente a ser uma preocupação na esfera espiritual, isto é, do poder da Igreja, mas também uma preocupação temporal sob a autoridade régia. Mediante a ligação entre a justiça régia e o pecado, os monarcas de Avis chamavam para si a responsabilidade de aplicar a justiça contra aqueles que cometiam as faltas pecaminosas, ação que se pautava em nome da salvação de seus súditos. Valendo-se dos seus poderes de autoridade fundamentados na origem do seu ofício divino e com base nos princípios cristãos, nas Ordenações do reino, estão presentes os tipos de comportamentos que eram criminalizados.

As Ordenações do governo de D. Duarte (Duarte, 1993, pp. 324-325) apresentam uma tipologia dos principais crimes cometidos na sociedade portuguesa do século XV, classificando-os em: crimes contra o rei, crimes contra Deus, crimes contra a pessoa humana, crimes contra a propriedade e a ordem econômica, crimes contra “a moral e os bons costumes”.

Dentre estas tipologias de crime apresentadas pelo autor, destacaremos aquelas que estão relacionadas com os pecados cristãos que foram alvos de intervenções da legislação régia portuguesa. Neste caso, está a blasfêmia que é caracterizada como o crime contra Deus que mereceu atenção secular, isto é, da autoridade régia, que passou também a punir aqueles que pronunciavam injúrias e atos contra Deus. Como escreve Gonçalves (2010, p. 240): “Na Idade Média a repressão à blasfêmia passou a ser não somente uma preocupação do poder espiritual, mas também do poder temporal, devendo o poder régio também vigiar as Sagradas Escrituras e punir aqueles que pronunciavam o nome de Deus em vão”.

Ainda o homicídio, que consta como um dos crimes contra a pessoa humana, em que os monarcas procuraram distinguir a sua natureza na medida em que a sociedade portuguesa medieval era uma sociedade baseada na honra, o que aumentava a prática deste crime. Então, havia a necessidade de se distinguir a natureza do homicídio, ou seja, entre aqueles praticados pela vingança honrada e em legítima defesa, que possibilitavam a esperança de uma indulgência ou a do homicídio voluntário, que se caracteriza pela prática do assassinato propriamente dito:

Desde o século XIII, as coletâneas de direito costumeiro como os textos da prática jurídica preferem distinguir os homicídios considerados “belos feitos” daqueles que se colocam entre os “casos desprezíveis”. Os primeiros respondem as leis da vingança honrada: eles ocorrem de dia, após um desafio, em público. Os segundos escondem-se privadamente, de noite, sem advertência feita à vítima, eventualmente recorrendo a um assassino profissional. Nos dois casos, o culpado se arrisca à pena máxima que em geral é o enforcamento ou o banimento, em virtude da lei divina que os juízes devem aplicar: “Não matarás”. (Gauvard, 2002, p. 609)

Destacamos também o roubo (crime contra a propriedade e ordem econômica) e o adultério, um dos crimes contra a moral e o bom costume. Em relação ao roubo, considerava-se, na Idade Média, um dos crimes que se punia de forma severa, com a pena de morte. Contudo, os monarcas, assim como atentaram para a natureza do homicídio, também o fizeram com a questão do roubo, pois nem sempre essa prática era enquadrada como um crime imperdoável. Havia o roubo dito ocasional quando se praticava em nome da necessidade, que era passível de ser desculpável, embora considerado um crime. Dessa maneira, nem sempre era considerada uma violência contra um bem, ainda mais quando se leva em conta os motivos que levaram a essa prática (Gauvard, 2002). Entenda-se que aquele roubo praticado, digamos pelo mau ladrão, não era tolerado, onde a prática da justiça régia punia, de acordo com a lei, esta atitude ilícita.

Quanto ao adultério, além de se caracterizar como um pecado grave na moralidade cristã também era visto como um crime por violar o juramento de fidelidade prestado ao conjugue, a apropriação indevida de bem de outrem (Gonçalves, 2010, p. 240).

A escolha destes crimes/pecados também é pautada nas discussões sobre os tipos de condutas pecaminosas que são mencionadas no texto da versão portuguesa da Visão de Túndalo, que não deixam de estar relacionados às faltas vividas no cotidiano. Como vimos, aquelas condutas constam como atos pecaminosos das almas que as levam ao espaço do Inferno e do Purgatório. Às vezes são referenciados como uma lição moral no espaço do Paraíso, como no caso do adultério, que serve de exemplo para mostrar que as almas eleitas que não transgrediram essa falta são recompensadas no Além. As narrativas de Visões sempre mencionam as condutas morais que se fazem presentes na sociedade medieval como um todo, sendo uma das suas principais características.

3. A JUSTIÇA DE DEUS NO ALÉM: ASPECTOS GERAIS

No pensamento medieval, a justiça terrena não se desvincula do imaginário cristão da justiça divina. Neste sentido, a ideia de justiça, de acordo com Russel (2003, p. 129), situa-se naquele “estado de negócios que prevalece quando a sociedade humana estiver trabalhando em harmonia com o plano de Deus para o mundo”. Qualquer ação que estivesse fora dessa harmonia divina, isto é, que violasse essa lei ou regra, já não se trataria mais de justiça, e sim de uma injustiça.

De acordo com os discursos cristãos, é no mundo do Além que se encontrava a verdadeira justiça, esta realizada por Deus que é justo nas suas sentenças no pós-morte. Enquanto aqui embaixo, na justiça terrena, o que se veria são as desordens, as injustiças e as desigualdades.

O mundo dos mortos deveria corrigir essas violações da justiça terrena, pois lá a justiça divina é implacável com as almas que recebem as suas sentenças, seja para o bem ou para o mal, em conformidade com os seus merecimentos ligados às ações pecaminosas ou virtuosas:

Para a cristandade medieval, o além é o lugar onde se realiza a justiça divina, onde se revela a verdade do mundo. Enquanto nas desordens do aqui embaixo a justiça é muitas vezes ultrajada e a verdade, violada, o além permite ver a realização da ordem divina. [...]. O além ordena a visão medieval do mundo; ele é um modelo perfeito, em função do qual se julga o aqui embaixo e cuja implicação é a maneira de reger a sociedade dos homens. (Baschet, 2006, p. 374)

Embora se tenha essa concepção de que o Além é o exemplo de correção e compensação das injustiças realizadas neste mundo, não se pode pensar em um mundo do Além que independe das realidades judiciais terrenas. Devemos lembrar que a Idade Média do século XII se caracterizou como um período em que a ânsia por justiça estava em evidência, tanto no campo político quanto no campo religioso, o que se prolongou, ao menos, até o século XV. Como exemplo, na esfera política, de acordo com Le Goff (1995, p. 253) “os reis e os príncipes territoriais reivindicam o ideal e a realidade de justiça”, enquanto, na esfera religiosa, o clero reforça a ideia de uma concepção cristã de justiça, desenvolvendo atividades nos tribunais episcopais e, sobretudo, criando um novo tipo de direito, o direito eclesiástico ou direito canônico.

É no direito canônico que aparecem alguns conceitos jurídicos ligados às reflexões sobre a criminalização dos pecados, tais como crime (crimen), delito (delictum) e culpa (culpa), que se tornaram cada vez mais comuns no ensino sobre a justiça canônica. Não por acaso que se constata, pelo menos a partir do século XII, a ocorrência de vocabulários jurídicos sendo utilizados nas narrativas de visões sobre o Além para se referir aos julgamentos das almas (Le Goff, 1995, pp. 252-253)6.

Convém sublinhar que, nesse momento de discussão teológica sobre a justiça divina, consolidam-se as ideias de um julgamento da alma após a morte, como mostram os relatos visionários no mundo do Além. Aliás, são através nesses relatos que se apresenta de forma mais detalhada a exemplaridade da justiça divina. Deus é o justo juiz que julga os mortos de acordo com as suas obras no plano terreno.

A Visão de Túndalo, como exemplo desses textos, para além de tratar dos ensinamentos sobre as perspectivas para se alcançar a salvação eterna, não deixa de exaltar os discursos cristãos sobre a verdadeira justiça realizada por Deus no mundo dos mortos.

A figura do anjo guia vai exercer um papel primordial nesse discurso da justiça divina, pois é este ser celeste que interpreta e fornece todas as explicações, sejam sobre os lugares os quais compõem o mundo dos mortos, sejam sobre as sanções e benesses infligidas sobre os condenados. E, ainda, tal discurso é mais visível quando se trata das próprias ações que o cavaleiro pecador sofre no seu processo de purificação da alma.

Os diálogos entre ambos os viajantes são fundamentais pelo fato de serem através deles que se conhecem os mais diversos detalhes sobre as expressões e consequências do julgamento divino. Ao longo da narrativa, vê-se pontuadas estas questões tanto nos momentos em que o cavaleiro testemunha os suplícios recebidos pelas almas pecadoras no Inferno e Purgatório quanto no caso das recompensas dos eleitos no Paraíso.

Mas, antes de destacarmos algumas passagens da narrativa que comprovam esses indícios, é preciso pontuar que a justiça e a misericórdia estão entrelaçadas no Além da Visão de Túndalo. E isso não podia ser diferente, na medida em que a Igreja não dissocia, segundo o modelo divino, a misericórdia da justiça.

Então, no texto do manuscrito, são frequentes estas duas associações como expressão de exatidão na aplicabilidade de um julgamento justo baseado no valor moral. Conforme Pontfarcy (2013, p. 207): “Or, cette union intrinsèque de la justice et de la miséricorde comme image de l’expression de la totalité de la Justice divine est souvent exprimée tout au long du récit”.

Assim, tanto no Inferno quanto no Purgatório, o cavaleiro testemunha os tormentos das almas que são punidas de acordo com as suas faltas. Como já foi dito, cada lugar se destinava a um tipo de punição, e isto quer dizer que, em cada ambiente, o sofrimento é proporcional aos merecimentos da infração pecadora. Ao longo da narrativa, o anjo sempre pondera sobre a proporção de castigos aos quais as almas são submetidas com o veredito da justiça, isto é, Deus aplica a justiça de acordo com o merecimento de cada um (Pereira, 1895).

Da mesma maneira, a retribuição, no Paraíso, é também um ato de exatidão da justiça divina na medida em que as almas eleitas são recompensadas pelas suas boas ações. Entenda-se aqui que cada eleito terá as benesses conforme a proporcionalidade de suas ações virtuosas.

A experiência da alma de Túndalo no Além, por si só, já se destaca como um exemplo da justiça e da misericórdia divina que são reveladas através dos tormentos que sofreu e a visão concedida a ele da glória dos eleitos. Recordemos que o cavaleiro era um pecador que não cuidava da sua alma, visto que praticou muitos pecados ao se envolver com os prazeres mundanos. Apesar de essas faltas serem bem claras no relato, o discurso do anjo entra em ação para reafirmar o quanto Deus foi piedoso com ele mediante tantos atos pecaminosos. São numerosas situações em que Túndalo está passando pelo processo da purificação da sua alma, que o anjo sempre o lembra da piedade, justiça e misericórdia de Deus.

O discurso da justiça divina se inicia assim que a alma de Túndalo chega ao Além e se vê espantada com os demônios que logo a atacam causando-lhe muito medo, pois estava ciente que era um grande pecador. Para apaziguar o seu temor, o anjo trata logo de dizer a ele que Deus será piedoso e não o julgará como merecia pelas suas faltas pecaminosas, conforme a citação: “Mais sey segura ca deus he de ti piedade e non padeceras tantas penas quanto merecistes mais passaras per muytos tormentos e depois desto tornaras ao corpo” (Pereira, 1895, p. 102).

A partir dessa citação, logo surgiria a dúvida: se a alma do cavaleiro não recebe o seu castigo no Além de forma proporcional aos seus atos pecaminosos, ele estava tendo um julgamento individual justo?

Primeiro, é preciso deixar claro que Túndalo ainda não realizou a sua passagem de forma definitiva, como podemos observar na citação anterior de que a sua alma vai retornar ao corpo só ao tempo de passar pela penitência dos tormentos. Então, aqui, ele está como um exemplo para que as outras pessoas deste mundo conhecessem os males que receberiam os pecadores e as glórias que merecessem os virtuosos. A própria narrativa trata de deixar isso claro. Feita essa observação que corrobora com a dúvida mencionada, parece-nos que Túndalo ainda não está submetido a um “verdadeiro” julgamento, exatamente pelo fato de ele não ter realizado o trespasse definitivo. Toda a sua experiência no Além era para se regenerar da sua condição de pecador e não repetir os erros terrenos que havia praticado para não merecer sofrer as penas na altura das suas faltas, quando chegasse o momento de a sua alma ir de forma definitiva para o mundo dos mortos. Num ato de pecado, a justiça e a misericórdia divina concedem a Túndalo a chance de se redimir, através do seu testemunho das ações no Além e das purgações dos seus costumes mundanos.

O manuscrito deixa isso de forma clara quando o anjo responde a Túndalo sobre o seu reconhecimento da misericórdia de Deus para com ele ao lhe enviar o anjo como o seu protetor e seu guia. De acordo com a passagem que retrata esse diálogo, conforme a versão portuguesa publicada por Pereira (1895, p. 105):

Túndalo: “Ay minha sperança e minha uida e meu bem quaees graças poderia eu dar ao meu senhor [...] por tanto bem que me fez quando te me deu por guardador e por meu guiador”.

Anjo: “Assy ia te eu disse que mayor he a misericordia de deus que a tua maldade. Empero que no dia do juízo dara a cada huun seu dereyto segundo como mereçer. E poren quando fores em teu poder non faças per que tornes a sofrer taaes e tantas penas”.

O anjo, ao longo do itinerário aos lugares do Além, sempre repete o discurso sobre a misericórdia de Deus para com o cavaleiro. Recorda-lhe das práticas das suas maldades, isto é, dos muitos atos pecaminosos que ele havia praticado e, por isso, merecia um maior rigor das penas.

Contudo, a misericórdia de Deus abranda o rigor da sua justiça em relação ao cavaleiro, que só não merece maiores sofrimentos por causa desse gesto divino que evita que ele padeça ainda mais. Como podemos verificar em mais um momento em que a alma de Túndalo está sendo castigada: “E non seendo a misericordia de deus lazerarias malamente e o passarias aqui muy mal per os teus mereçimentos” (Pereira, 1895, p. 106).

Dessa maneira, o gesto da misericórdia de Deus intervém na intensidade do castigo. Mas, conforme os ensinamentos cristãos, a justiça divina sempre será justa tanto na retribuição virtuosa quanto nos rigores aos pecadores que, respectivamente, são recompensados ou penalizados em proporção aos seus merecimentos.

No entanto, o fato de Deus ter misericórdia não significa que alguma alma escape da justiça e, como já se disse, a misericórdia faz parte da justiça. É este o caso de Túndalo que, apesar da misericórdia de Deus, ele, como pecador, não deixa de cumprir as suas penas em razão dos seus pecados mundanos.

Essa questão da misericórdia, como parte da justiça divina, é reafirmada no relato pelo anjo no momento em que Túndalo é submetido a uma penalidade mais intensa que o mesmo chega a duvidar da misericórdia de Deus. De acordo com o diálogo entre ambos (Pereira, 1895, p.107):

Túndalo: “Ay senhor hu he aquela misericordia que nos dizem que há em deus e que deus he misericordioso. Pois hu he aquela misericordia ia que tantas penas e tantos tormentos hey passados”.

Anjo: “Oo filha minha quantos son enganados per esta feuza que ham que o senhor assi faz misericordia. Ca em como quer que em deus aia muyta misericordia e seia muy misericordioso como he non leixa por en de fazer justiça segundo a justiça de cada huun en como a merece. Assi segundo a sua grande misericordia perdoa muytas cousas a muytos que mereciam muy mais grandes penas por ellas.

Assim, como exposto no diálogo, Túndalo, diante de uma provação tão severa e depois de ter passado por outras penas, questionou, ao seu guia, se realmente Deus estava sendo misericordioso com ele ou se haveria mesmo a misericórdia diante de tantos tormentos que já tinha sofrido. De forma didática, o anjo transmite não só a mensagem para o cavaleiro como para os receptores da narrativa que apesar de Deus ser misericordioso não quer dizer que o pecador escape dos vereditos da justiça divina. Portanto, de acordo com Mattoso (2013, p. 303), “não se podia confiar na misericórdia divina se não se evitava o pecado e não se praticasse boas obras”.

4. APLICAÇÃO DA JUSTIÇA DIVINA NOS LUGARES DAS ALMAS NO ALÉM NA VISÃO DE TÚNDALO

A pedagogia da Igreja se referiu ao longo da Idade Média que no Além as almas dos indivíduos conhecem os seus méritos e deméritos em função das condutas morais praticadas neste mundo. As narrativas de Visões sobre o Além desempenharam uma função fundamental para o convencimento sobre as ações que são submetidas às almas, sejam estas dotadas de pecados ou virtudes no mundo dos pós-morte. Melhor dizendo, não só o convencimento, mas também a exemplaridade para os vivos que são informados da justiça divina aplicadas sobre as almas no mundo dos mortos em função dos comportamentos praticados aqui embaixo.

Referenciamos, portanto, a história do cavaleiro Túndalo no Além que oferece um reportório didático sobre as aplicações da justiça cristã divina na qual as almas são submetidas a várias sentenças nos lugares do Inferno, Purgatório e Paraíso, como exemplaridade de comportamentos terrenos que vão desde beneficiá-las ou puni-las, conforme as práticas das condutas morais feitas por elas neste mundo.

Em um espaço temporal de três dias, Túndalo vai seguir um itinerário, no mundo do pós-morte, acompanhado de seu guia, o anjo celestial, cuja principal missão é mostrar e explicar todos os elementos que estão nos caminhos percorridos pelas almas.

Tais caminhos, no Além-Túmulo percorrido pelo cavaleiro, transformam-se em uma longa viagem aos lugares destinados às almas depois da morte, onde é proposto, ao viajante, fazer de certa forma, uma peregrinação interior cuja caminhada tem um fim específico: redefinir a sua condição passada de um pecador através de um itinerário de conversão.

De acordo com a versão portuguesa da narrativa, o itinerário de Túndalo se realiza nos três lugares que compõem o Além das almas: Inferno, Purgatório e Paraíso, onde são bem caracterizados os caminhos que levam à morte ou à salvação eterna. Nesse sentido, o percurso se inicia pelos lugares destinados às almas dos maus cristãos que tiveram uma conduta pecadora e, em seguida, a trajetória aos ambientes das almas eleitas que exerceram a prática das virtudes cristãs.

Na Visão, são apresentadas as diversas penalidades que sofrem as almas que foram condenadas no espaço do Inferno. Por meio de uma descrição detalhada dos suplícios dos danados que cometeram os pecados mortais, a narrativa mostra as ações que aguardam os faltosos no mundo dos mortos. A cada falta pecaminosa cometida pelos condenados corresponde uma diferente penalidade infernal que não se dissocia da própria natureza das ações cometidas, que no plano terreno encontram no Além um lugar específico para a aplicabilidade das infrações.

No Quadro 1, são identificadas as categorias de almas condenadas no Inferno e as respectivas ações punitivas da justiça divina, e como cada categoria de almas condenadas sofre diferentes penalidades no Inferno, que está, de forma clara, ligada à fragmentação deste espaço. Como exposto, percebe-se que cada pena se inscreve em lugares específicos onde os danados e as danadas são submetidos a diversas torturas (Pereira, 1895). Essa questão pode ser constatada através do itinerário do cavaleiro que é guiado pelo anjo aos diferentes lugares infernais compostos pelos: vale de trevas, vale de forjas, pela ponte, pelo rio e pelo poço.

Quadro 1. A aplicação da justiça divina sobre as almas no Inferno na Visão de Túndalo

Categoria de almas condenadas

Aplicação das penalidades da justiça divina no Inferno

Assassinos/matadores

Ser queimadas, derretidas e fervidas em carvões acesos

Soberbos

Padecer grandes tormentos em um vale fundo e de mau odor

Ladrões

Passar por uma ponte infernal estreita e cair no abismo representado por um rio

Enganadores/falsários

Ser derretidas como chumbo e atormentadas com forjas de ferro num vale de forjas

Almas que negaram a crença nas Escrituras

Padecer no fundo de um poço os tormentos das chamas de fogo, dos diabos e de Lúcifer

Fonte: Oliveira (2019, p. 228).

Segundo o Quadro 1, no itinerário aos lugares infernais, a primeira visão de castigo que o cavaleiro testemunha é a das almas assassinas. Estas estão localizadas no vale de trevas, onde sofriam as terríveis penas de serem queimadas e derretidas em carvões acesos. Esse tormento é descrito da seguinte maneira:

[...] huun uale de teebras [...] tynha huma cubertura de ferro em que podia auer sete couedos em grosso e tanto ardia que se ouluia em carvõoes accesos per ella [...]. E iaziam sobre ella muytas almas mesquinhas que se queymauan e feruian en ella como o azeite ferue na sartãae e depois que feruiam deitauanse per ella a fundo assi como a cera derretuda polo pano e cayam sobre os caruõoes acesos. (Pereira, 1895, p. 103)

Na concepção cristã, era dessa forma que as almas assassinas padeciam no mundo dos mortos as consequências de terem ceifado a vida do outro. São, portanto, cozidas e assadas em uma espécie de frigideira cujo vale de trevas parece representar uma grande cozinha, onde as almas são tidas como ingredientes para o cozimento. No entanto, as punições dos assassinos não estavam restritas apenas às almas que praticaram essas infrações, também servem para aqueles que ajudaram na concretização do ato. É o que explica o anjo quando Túndalo pergunta o que fizeram as almas para merecerem aquelas penas, tendo como resposta que os assassinos/matadores e os seus colaboradores merecem tais tormentos. As almas que praticaram o pecado da soberba são punidas em um segundo vale, onde padecem nas profundezas escuras e dos odores maus deste local. É interessante pontuar que a narrativa não informa muitos detalhes sobre as penalidades dos danados que cometeram essa falta, tal como vimos nas descrições dos suplícios dos assassinos.

Seguindo o itinerário das punições dos danados, Túndalo chega até a ponte infernal onde são castigadas as almas que cometeram o pecado do roubo. Estas são precipitadas da ponte infernal, pois não havia outro destino a não ser cair em um abismo representado por um rio terrível de fedor, afinal, tratar-se-ia de mais um exemplo de infração contra a lei divina que deve ser punida com rigor. E o cavaleiro testemunhou a queda de várias almas que tentavam atravessar a grande extensão da ponte, porém sem sucesso.

Em meio à punição moral dos ladrões, nesta ponte infernal, surge um fato curioso. Túndalo viu um peregrino trajado de vestes brancas e com uma palma na mão atravessar esta ponte de modo seguro e rápido, conforme a citação (Pereira, 1895, p.104): “[...] e uiu vynr pola ponte huun peregrin que hya per ella muy seguro e tragia huma escrauina uestida e huma palma em sua mãao”.

A primeira questão que de imediato é colocada é: por que um peregrino está no espaço do Inferno e fazendo o mesmo percurso das almas pecadoras? Não por acaso, o cavaleiro estranhou ao observar um justo passando por uma ponte que, a priori, é o lugar das almas pecadoras. Então, ele perguntou para o anjo o porquê da presença de uma alma justa nesse lugar. Logo o anjo respondeu que o peregrino era um homem de boa alma e de boa vida, portanto, a sua presença, nesse lugar, era para sentir maior prazer ao ver os pecadores padecendo pelas suas faltas (Pereira, 1895, pp. 104-107).

Bem, se o peregrino fez a passagem de forma tranquila, isso já o qualificaria como uma alma justa. O que difere das almas pecadoras que, inevitavelmente, não concluem a travessia na ponte devido à mácula do pecado mortal que já a sentencia com a penalidade no abismo infernal.

Quanto às almas que praticaram a falsidade e foram enganadoras nesse mundo são castigadas em um vale que contém muitas forjas de ferro. Nele se encontram muitos demônios que punem os danados através de diversos instrumentos de torturas que são materiais próprios da utilização dos ferreiros, como mostra a citação:

Enton tomauannas os diaboos com gadanhos e com torqueses e poynhannas nas foria e malhauan em ellas com martellos de ferro. En tal maneyra que aas uezes de cen almas se fazia huma massa. E enpero que muytos marteyros auiam non morrian por em o que era cousa que ellas muito deseiauan. (Pereira, 1895, p. 109)

Aqui observamos o quanto os castigos são cruéis contra as almas que desobedeceram aos ensinamentos divinos. Tanto que os danados preferiam a morte de fato ao ficar sofrendo pela eternidade. Para além destas tribulações, as almas dos enganadores/falsários também eram submetidas ao fogo que as derretiam como chumbo, porém retornavam a forma inicial para reiniciar novamente o processo de tortura. No mais, era um castigo sem fim, como informa esta passagem da narrativa que mostra a atuação dos demônios na aplicação dos castigos: “E assy a atormentauam con outras muytas almas que dentro jaziam. E assy se deretiam como o chumbo e des que eram deretudas encorporauense assi como eran primeyramente e tornauense per aquela guisa que eran ante” (Pereira, 1895, p. 109).

E a última pena dos condenados vista pelo cavaleiro foi a das almas que negaram a crença na Escritura e padeciam no poço onde se encontravam Lúcifer e um exército de demônios. Da parte externa do poço, Túndalo viu várias almas serem alçadas juntas com a fumaça que saia desse lugar. Para se ter uma ideia dos estados dos danados, a narrativa as compara como folhas queimadas, dando assim a dimensão dos seus tormentos.

Quando o ente celeste guia Túndalo à parte interna do poço, o que ele testemunha são os mais terríveis tormentos que aquelas almas sofrem nas mãos do inimigo mortal, Lúcifer. Dessa maneira, Lúcifer com suas mãos enormes e unhas que parecem lanças afiadas atormentava aquelas almas, esmagando-as como se fossem bagos de uvas. Aqui se evoca uma comparação para mostrar o quanto era cruel esse castigo, como se o agricultor fosse Lúcifer pressionando as uvas, no caso as almas.

Para além desse membro das mãos de Lúcifer, era também utilizado o seu rabo que tinha um tamanho enorme e dotado de várias agulhas com os qual torturava as almas, ferindo principalmente aquelas que, por ventura, escapassem das suas mãos. Quando este maligno respirava, espalhava as almas para todas as partes do Inferno, isto é, como dissemos antes, eram lançadas para fora do poço. Mas logo depois as almas retornavam para o seu ventre para padecer de mais tormentos.

Entretanto, para além de carrasco dos danados, Lúcifer também era vítima dos seus próprios pecados e, por isso, padecia de grandes penas, de acordo com a obra: “E aquela besta mesquinha a que dizen lucifer de si mesmo padecia grandes penas” (Pereira, 1895, p. 110).

Desse modo, o manuscrito descreve Lúcifer aprisionado em um leito de ferro, onde os demônios penalizam o seu próprio chefe: “E aquel Lúcifer iazia escundudo em huun leito de fero, feyto a maueyra de grelhas e so aquel leyto iazian caruooens aceeses e soprauannas e accendiannos muytos demoes e cercauanno de muytas almas [...]” (Pereira, 1895, p. 111).

A narrativa, didaticamente, informa o porquê de Lúcifer também sofrer dos mesmos tormentos que os pecadores, já que ele poderia apenas cumprir a função de aplicar os mais cruéis castigos nas almas que negaram os ensinamentos divinos. A indagação de Túndalo, ao anjo, é essencial para essa explicação, porque aquele o interroga dizendo que visão tão má é essa e que homem é este. E o anjo diz: “Este homem que dizes é o anjo Lúcifer que iniciou as trevas, o qual vivia no deleite do Paraíso, mas por sua soberba se afundou no abismo por querer ser semelhante ao Altíssimo”. Esta é a justificativa de Lúcifer não apenas ser reconhecido como aquele que pune os danados como o próprio também é punido por esse gravíssimo pecado.

Feitas estas considerações sobre as penalidades das almas condenadas no Inferno, é importante observar a preocupação da narrativa ou do redator em acentuar o realismo das penas. O que dará a alma certa dose de corporeidade. Como observamos, as almas ao sofreram as punições, possuem a similitude de uma materialidade, no caso o corpo, o que será de grande relevância para a pedagogia cristã sobre a realidade da continuidade da vida após a morte. Assim, no Inferno, as almas reencontram um corpo para sofrer as penalidades das suas faltas para com Deus.

Depois do anjo-guia apresentar a Túndalo as penas dos danados condenados ao Inferno, seguem, no itinerário dos castigos aplicados, as almas portadoras de pecados veniais no Purgatório. O manuscrito descreve quais são as faltas passíveis de expiação, no pós-morte, que levam as almas aos castigos de purgação.

Neste percurso, o cavaleiro não só vai testemunhar as diversas provas que as almas são submetidas, nos lugares de purgação, como ele próprio vai passar por diversos castigos para a purificação das suas faltas.

Antes de apresentarmos quais são os castigos destinados às almas no espaço do Purgatório, conforme a justiça divina, convêm destacarmos algumas questões sobre o local de castigo para a purgação dos pecados considerados leves. Antes da consolidação do espaço do Purgatório como uma região do Além, muito se discutiu sobre onde seria feito esse processo de purificação dos pecados.

Entre uma diversidade de opiniões sobre esse fato, destacam-se as reflexões dos pais do Purgatório, como informa Jacques Le Goff (1995), que lançaram as bases teóricas para este espaço no pós-morte: Santo Agostinho e Gregório, o Grande. Para o primeiro, a purgação já começava aqui embaixo através das provações suportada pelas penas terrenas através das penitências. Enquanto que para o segundo a preocupação estava voltada para o lugar onde acontecia a purgação neste mundo, uma vez que sugeria que os vivos já poderiam providenciar a expurgação dos seus pecados aqui embaixo basicamente nos locais onde foi consumada a falta (Le Goff,1995, p. 164).

Estas discussões também estão presentes no manuscrito, pois, em algumas passagens que Túndalo testemunha as purgações das almas, o anjo lhe explica que aqueles que não cumpriram a sua purgação, no mundo dos vivos, através da penitência ou confissão, terão que cumprir no mundo dos mortos para alcançar a salvação.

O que denota que, mesmo depois da criação do Purgatório como uma região do Além, ainda prevaleceu, por longos períodos, essa ideia de que a purgação já poderia ser providenciada aqui na terra. Dessa maneira, as pessoas que estivessem na condição de pecado venial poderiam antecipar as suas expiações antes do estágio final da vida terrena, com as devidas intermediações da Igreja para a concretização dessa ação. Esta instituição orientava, através da Confissão, a penitência que deveria ser cumprida, já nesse mundo, para se evitar uma reparação mais cruel no mundo dos mortos.

No entanto, havia ainda a possibilidade de as pessoas, mesmo confessas, não conseguirem cumprir totalmente as suas penitências aqui embaixo, principalmente porque morreram sem concluí-las como fora determinado pela Igreja. Cabia, então, terminá-las ou iniciá-las no Além, caso não houvesse o tempo necessário para se cumprir as penitências, nesta vida, para a expiação dos delitos carnais. De qualquer forma, nenhum indivíduo escaparia da obrigatoriedade de sanar sua falta no pós-morte.

Caberia, então, aos fiéis escolherem entre uma penitência reparadora neste plano ou no mundo dos mortos. Pelos discursos cristãos, seria mais vantajoso realizar essa ação aqui embaixo, pois, no Além, os castigos de purgação eram considerados muito severos, na medida em que a justiça divina era implacável para com a justa retribuição da sentença, de acordo com a gravidade das faltas.

A Visão de Túndalo mostra o quanto os castigos de purgação, no Além, eram tão cruéis quanto às penalidades infernais, como exposto no Quadro 2, de acordo com a edição publicada por Pereira (1895):

Quadro 2. Aplicação da justiça divina nos castigos purificadores das almas no Purgatório na Visão de Túndalo

Pecados das almas

A justiça divina nos castigos purificadores no Purgatório

?

Ser atormentadas pelos demônios com instrumentos de torturas; Padecer de um vento frio no fogo e na água gelada

Furto

Ser atormentados pelas bestas do mar

Passar por uma ponte purgatória cheia de pregos afiados com o objeto de furto

Gargantões

Padecer de grandes penas e tormentos em uma casa comparada a um forno aceso onde se encontram vários demônios

Fornicadores

O que se acham melhores que os outros [orgulho]

Sofrer em um lago cuja água alternava entre quente e gelada; Ser comido por uma besta; Ser torturado por serpentes nos membros pecaminosos.

Más línguas

Fonte: Oliveira (2019, p. 236).

Como podemos perceber, no primeiro castigo de purgação, não está especificado qual falta pecaminosa cometida pelas almas que merecem passar pelas provas dos tormentos dos demônios e dos fenômenos meteorológicos no espaço do Purgatório. Como já dissemos, outras versões do manuscrito revelam que esta falta se trata das almas que cometeram o pecado da traição. Estas são enviadas para a montanha da purificação.

A provação para as almas que praticaram o furto se dava em duas localidades, no mar e na ponte que tinha sobre ela. Quanto ao mar, este estava cheio de demônios que soltavam fogos pela boca e faziam ferver toda a água. Estavam à espera de algum pecador que não conseguisse cumprir a sua prova, isto é, atravessar a ponte muito longa, estreita e cravejada de espinhos que existia acima dela.

Neste pecado do furto, Túndalo não só testemunhou como também passou por essa provação pelo fato de ter praticado o furto no plano terreno. Ele furtou uma vaca do seu compadre. Por esse motivo, cumpriu essa pena com muita dor, levando consigo esse objeto de furto, como descrito pelo relato:

[...] E a alma quando uiu que auia de passar pola ponte disse ao angeo. Esta ponte e estas penas son daqueles que furtaron [...] e tu merecias de entrar em elas [...] Mais conuen que ora passes per ella sem my e passaras contego huma uaca braua. Enton apareceo a uaca brava e muy forte e per nenhuma guisa non queria hir pola ponte, enpero aacima ouue de passar [...] ca a ponte era muy estreyta e non podian hir per ella se non posessen os pees em aqueles clauos. [...] ca lhes sayya o sangue dos pees per fecto dos clauos que se lhe metiam per eles, per tal guisa [...]. (Pereira, 1895, p. 105)

Como escreveu Zierer (2015, pp. 5-29), a ponte é um elemento educativo que serve tanto para o aprendizado da alma viajante que precisa se redimir de seus pecados quanto para outros que conheceram essa narrativa na Idade Média. No caso de Túndalo, ele passou pelo aprendizado da provação da ponte-Purgatório, assim como ele pagou sua penitência em outros lugares de purgação, no Além, para a remissão de seus pecados. É bom ressaltar que, nas visões religiosas, a ponte não tem só uma função probatória, ela é também um instrumento de penitência e de purgação dos mais variados pecados.

A passagem da ponte é um elemento moral fundamental, quem levou uma vida virtuosa cristã está seguro da sua passagem rápida para o Paraíso, sem nada a temer. Enquanto quem carrega o peso do pecado, os viciosos, a consequência é a queda infernal. Neste sentido, a Visão de Túndalo, é um instrumento moral que mede a conduta das almas no mundo dos mortos através da travessia ou não por ela. De certa forma, a ponte atua, conforme a expressão utilizada por Lucas (1986), como um elemento bifronte, serve tanto para a condenação quanto a salvação.

De acordo com Mourão, a ponte, na Visão de Túndalo, está relacionada ao tema da passagem difícil e se caracteriza como um percurso iniciático, onde o morto deve atravessá-la para a sua viagem no Além:

A ponte está em relação com o tema da passagem por essa porta que separa e liga horizontalmente o Inferno e o Paraíso. O tema da passagem difícil ou estreita é eminentemente iniciático. Nela se situa o encontro com o destino: Aí se escolhe: O Céu, a Terra, ou o Inferno. [...]. Os mortos devem atravessar esta ponte na sua viagem para o Além. (Mourão, 1988, p. 91)

A justiça divina sobre as penas purgativas dos gargantões e fornicadores são realizadas em uma casa na forma de um forno. Lá, as almas eram queimadas e sofriam várias provações de muitos demônios que portavam, em suas mãos, instrumentos que esfolavam e cortavam em postas as almas dos pecadores que, depois dessas ações, eram assadas nas chamas que preenchiam aquela casa. Esta é mais uma provação que Túndalo também passa, já que ali ele padeceu de muita fumaça, muita quentura, fedor e açoites.

Por fim, Túndalo chega a um lago onde as almas que cometeram o pecado de se acharem melhores que os seus pares estão sendo castigadas por uma besta enorme que se encontra nesse local. Esta se alimentava das almas que padeciam muito grandes penas no seu ventre. Para além desse tormento, as almas também enfrentavam a quentura e a frieza desse ambiente. Neste mesmo local, também sofrem as almas que praticaram o pecado das más línguas. De acordo com Casagrande & Vecchio (2022, p. 349), “o pecado da língua compreende todos os erros que cometemos falando, da blasfémia à mentira, da adulação à linguagem obscena, da maledicência à injúria”. No manuscrito, o anjo adverte que as almas, tanto homens quanto mulheres, que cometeram este pecado, ficariam prenhas de serpentes que nasceriam por todos os membros: braços, peito e outros lugares do corpo. Estas torturam as almas com seus dentes de ferro bem afiados e mordem todos os membros das almas (Pereira, 1895, p. 108).

Dessa maneira, Túndalo testemunhou e experimentou de vários castigos que funcionam como provação para as almas que tem que cumprir as provas para alcançar a salvação no espaço do Paraíso. Como podemos perceber, são múltiplos os castigos que as almas dotadas de pecados veniais são submetidas no Além e, claro, que se assemelham às próprias punições da justiça divina que sofrem os danados no Inferno.

5. A EXEMPLARIDADE DA DIVINA JUSTIÇA NO PARAÍSO CELESTIAL NA VISÃO DE TÚNDALO

O espaço do Paraíso, no Além, é o lugar das almas que obedeceram aos mandamentos da lei divina. Todos os homens e mulheres que praticaram as boas condutas cristãs, aqui embaixo, mereceriam, no pós-morte, a recompensa dada por Deus de serem contemplados com a bem-aventurança do repouso eterno.

Após as visões e experiências espirituais da justiça divina nos lugares destinados aos pecadores, o cavaleiro é conduzido pelo anjo ao Paraíso, lugar de alocação das almas virtuosas que merecem várias recompensas pela justa vida terrena, isto é, dedicada a práticas cristãs como ensinou a Igreja Cristã representante de Deus aqui em baixo.

Cada eleito vai conhecer a sua bem-aventurança de acordo com o valor das suas ações virtuosas, pois a retribuição é feita de forma hierárquica. O espaço do Paraíso celeste, no Além, na Visão de Túndalo, apresenta-se dividido em três muros denominados respectivamente de Muro de Prata, de Ouro e de Pedras preciosas que formam as diferentes moradas gloriosas das almas eleitas de Deus. São nesses lugares que as almas estão distribuídas de acordo com uma ordenação harmoniosa, onde cada eleito ocupará as suas devidas posições associadas à proporcionalidade dos seus esforços para com as obras cristãs.

Na retórica clerical, essas compartimentações do lugar paradisíaco em muros estavam associadas às recompensas meritórias das almas que recebem, no Além, diferentes graus de felicidades celestiais, cuja proporcionalidade da retribuição divina dependia da virtude de cada alma, enquanto permanecia em seus corpos no plano terreno.

Isso fica claro quando a Igreja Católica justifica a presença das diferentes moradas que se encontram no Paraíso Celestial, pois, em seu discurso, propaga que nem todas as almas que estão neste lugar desfrutam de felicidades iguais por existirem graus de glórias e beatitude em função dos méritos de cada um (Delumeau, 2003). Tal afirmação fica evidente na Visão de Túndalo ao descrever o espaço celeste circundado por muralhas onde estão distribuídos os grupos de almas eleitos e suas diferentes recompensas que obedecem a uma hierarquia de méritos que vão ao encontro das observâncias morais dos ensinamentos cristãos.

Demonstrar as ações no Paraíso para com as almas que viveram boas condutas, conforme as orientações da representante de Deus na Terra, significa transmitir aos vivos o valor exemplar de se dedicar a uma vida religiosa em sua plenitude ao renunciar o mundo mundano, permitindo-lhe assim alcançar antes do trespasse a salvação eterna.

Pedagogicamente, é mostrado pelas personagens da visio a exemplaridade do modo ideal das virtudes cristãs de cada alma que recebe, no Céu, as graças infinitas sobre a luz glorificante de Deus, conforme as ações particularmente meritórias daquelas que recebem recompensas distintas estritamente relacionadas aos graus de boas ações. Assim, as almas justas, como veremos na Visão de Túndalo, serão hierarquicamente divididas ou distribuídas pela natureza das ações virtuosas que elevam a mais intensa contemplação das recompensas divina.

No Quadro 3, está exposta a visão testemunhada pelo cavaleiro da bem-aventurança da divina justiça das almas dos eleitos nos três Muros do Paraíso celestial. Observamos que o manuscrito apresenta a separação espacial das categorias de almas eleitas no Reino Celeste de acordo com as obras cristãs praticadas enquanto viviam em seus corpos, cujas obras obedecem a um critério de graus de glórias pautado nos tipos de ações que segue uma escala de valor santificante. Tanto que são didaticamente enumeradas as diferentes virtudes cristãs feitas por cada eleito, como se pode notar no manuscrito, estabelecendo uma distribuição hierárquica nos Muros celestiais de acordo com as obras realizadas em prol do senhor. Cada um é recompensado pelo esforço que fez e por isso conhecem e desfrutam das glórias celestiais segundo o grau de dedicação que dispensaram as obras cristãs.

Quadro 3. A divina justiça dos eleitos nos Muros do Paraíso Celeste na Visão de Túndalo

Muros do Paraíso celeste

Almas eleitas

Práticas virtuosas das almas

A bem-aventurança

Prata

Os casados.

Respeitar a ordem do casamento não cometendo o pecado de adultério.

Alegria Deleitamento Contentamento Bons odores Claridade.

Os doadores de bens para os pobres, os romeus e a igreja.

Repartir os bens temporais com os pobres, as igrejas de Deus.

Companhia de Santos

Glorificar a Deus Pai, Filho e Espírito Santo.

Ouro

Mártires.

Viver uma vida Santa; sofrer, abster-se e guardar os seus corpos dos prazeres e vícios.

Coroas e assentos de Ouro

Monges, homens e mulheres.

Obedecer a uma ordem e regra cristã.

A folgura e o prazer de estar em tendas

Defensores da Igreja.

Defender as obras da Igreja; tabalhar contra os vícios da carne.

Morar em casas sobre uma árvore carregadas de frutos

Pedras Preciosas

Patriarca, Profetas, Mártires, Virgens, Confessores, Bispos Arcebispos.

Repartir os bens temporais com os pobres e os mosteiros; Não guardar nenhum bem se não o necessário; ser bom cristão e casto.

Contemplação beatífica na companhia das nove ordens dos Anjos

Fonte: Oliveira (2019, p. 243).

A Visão de Túndalo mostra claramente que as boas obras elevam as almas a felicidades nos recintos do Paraíso celestial e são como valores que devem servir de exemplo para os fiéis edificarem as suas vidas no fundamento cristão e garantir a salvação de suas almas. Como observamos no Quadro 3, temos algumas virtudes que caracterizam as almas eleitas que estão de acordo com as pretensões dos modelos morais da Igreja para com a sociedade medieval. Naturalmente, essas descrições, ao mesmo tempo em que visam influenciar no comportamento dos que têm acesso a essa narrativa, também justificam a hierarquia dessa instituição que atua, neste mundo, como guia espiritual para a salvação eterna.

Primeiramente, no Muro de Prata, temos a importância que o relato menciona de seguir uma vida conjugal legítima, como fica evidente quando o anjo explicitamente justifica a presença das almas que se comportaram corretamente nas suas vidas conjugais: “[...] como uees pois gran cousa he o sacramento do casamento legitimo. Ca todo aquel que o ben guardar em seu corpo folgara senpre em nesta folgança” (Pereira, 1895, p. 115).

A função didática dessa passagem transmite a mensagem de que as pessoas que seguiram os mandamentos do casamento, conforme indicado pela Igreja que o institucionalizou como um sacramento matrimonial baseado no Evangelho, terão suas almas elevadas ao Muro de Prata desfrutando de boas recompensas.

Tanto que a mensagem é tão enfática propondo um modelo cristão como meio de disciplinar a vida conjugal quando deixa bem claro, como vimos, que aquele que guardar os seus corpos, isto é, no sentido de não cometer o pecado que perturba a ordem conjugal, o adultério e manter o matrimônio do casamento legítimo perante Deus terá a sua glória no pós-morte.

Outro grupo de almas eleitas que se encontra, no Muro de Prata, é o doadores de bens para os pobres e para a Igreja. Como exemplo para os vivos, essa mensagem cristã revela que todas as pessoas que se preocuparem com o seu próximo e lhe derem assistência são recompensados pela justiça de Deus na vida eterna. Da mesma forma, os que se dedicaram às doações para a Igreja também eram recompensados com a salvação no pós-morte no Muro de Prata no Paraíso Celeste.

A exemplaridade das doações aos pobres, das esmolas, e da hospitalidade é considerada, no manuscrito, como uma das ações que dá a garantia do alcance da salvação da alma. Conforme a pastoral, esses gestos feitos, no plano terreno, têm as suas recompensas no Além.

As almas dos Santos também são os habitantes do Muro de Prata. Os seus merecimentos, em repousarem neste lugar, devem-se ao tipo de conduta de vida que tiveram aqui embaixo, isto é, baseado em uma regra que lhe permitia o contato mais direto com Deus. Enfim, praticavam devoções e orações com uma vida espiritual intensa de louvor e contemplação. Mesmo com as suas almas já no Além, há a continuidade dessas ações que são testemunhadas por Túndalo que vê a companhia de Santos que se alegram muito com Deus dizendo Glória seja ao teu Deus Pai, Glória ao teu Filho, Glória ao teu Espírito Santo, perseverando sempre no louvor a Santa Trindade (Pereira, 1895).

Como exposto no Quadro 3, todas as almas eleitas que se encontram, no Muro de Prata, eram recompensadas com a bem-aventurança devido às suas ações cristãs. Tal bem-aventurança é revelada através da alegria, do deleitamento, contentamento, os bons odores e claridade que são as características daquele lugar.

No Muro de Ouro, estão as hierarquias de eleitos que possuem um grau de perfeição mais elevado do que as almas que se encontram no espaço que o antecedem, nele estão as ordens da Igreja: os mártires de Deus, monges e homens e mulheres que praticaram a observância de uma regra, defensores e construtores da Igreja. Vejamos quais foram as virtudes que cada um desses membros da Igreja fez para serem conduzidos a essa morada.

Os Mártires de Deus, que foram as primeiras almas vistas por Túndalo no Muro de Ouro desfrutando dos bens gloriosos. Esses eleitos são descritos como os “servos de Deus que trabalharam e resguardaram os seus corpos dos prazeres e vícios oferecidos no mundo terreno e tiveram uma vida completamente santa (Pereira, 1895, p. 116).

As almas dos monges, dos homens e mulheres que praticam a observância de uma regra repousam, nesse Muro, pela sua obediência aos ofícios divinos de difundirem os ensinamentos cristãos alegremente e de boa vontade assim como lhes foi mandado. Essa é a obra realizada que os puseram neste espaço agradável, como explica o anjo para o cavaleiro: “[...] prometen obediencia a seus mayores e compren e fazen alegremente todo aquelo que lhes per eles he mandado muy de boon coraçon e de boa vontade” (Pereira, 1895, p. 116).

Para a Idade Média, os monges são por excelência o modelo de prática concreta de uma vida espiritual voltada para a oração, evangelização e eram vistos como o exemplo de vida religiosa que os fiéis devem imitar para alcançarem as graças antes de chegarem ao mundo do Além.

A missão que os monges exercem na terra e o próprio estilo de vida que levam são muito exaltados no manuscrito, pois mostram os seus esforços, sacrifícios e resistências contra as tentações deste mundo, submetendo seus corpos a um castigo para controlá-lo, como bem informa o manuscrito: “[...] leixan as suas próprias vontades e seguen as alheas por que uerdadeyramente possam dizer. Senhor poseste homens sobre nossas cabeças e passamos por fogo e agua. Esto he per fame e frio e sede [...]” (Pereira, 1895, p. 116).

Túndalo testemunha a bem-aventurança dos monges, homens e mulheres em uma praça cheia de tendas armadas onde desfrutavam da folgura e do prazer neste ambiente que soavam sons maravilhosos de instrumentos musicais.

Quanto às almas dos defensores da Igreja, a narrativa enfatiza as ações missionárias que eles fizeram em vida em prol das grandes obras dessa instituição para chegarem até o Muro de Ouro. Dentre as virtudes feitas por eles estão os cumprimentos com os seus deveres de resguardarem-se dos desejos da carne e trabalharam para defendê-la. Por estas ações, desfrutam da morada em casas sobre uma árvore carregada de frutos, que, aliás, o anjo explica para o cavaleiro o que ela representa, conforme o manuscrito:

Esta aruor que tu vees He maneyra e obra da sancta egreia. Estes homeens e estas molheres que moran so Ella foron defensores e fazedores della e trabalharon muito de a fazer e de a defender. E pólos beens que elees hi fezeron guaanharon e mereceron de seer aqui chegados e aconpanhados. E por esta maneyra tal desempararon a uida e o sabor do mundo e guardaronse de conprir os deseios da carne que lida cada dia contra a alma linpamente e dereitamente e piedosamente uiuendo no mundo. (Pereira, 1895, p. 118)

O Muro de Pedras Preciosas, no manuscrito, não é só um lugar agradável como os anteriores, ele representa a expressão máxima das benesses que as almas recebem no Além, tanto que enfaticamente o texto deixa bem claro que é o lugar onde se concentram todos os prazeres e glórias que antes foram relatados nos outros Muros: “Mais daquel logar hu estonce stauan e como quer que uissen todos os plazeres que uos dissemos e folgança e glorias que ante uiron [...]” (Pereira, 1895, p. 119).

Nesse sentido, podemos compreender o Muro de Pedras Preciosas como a morada definitiva das almas eleitas, bem como o melhor espaço de alocação de almas no Além, restrito apenas aos que foram justos e puros tanto na sua forma comportamental quanto nos seus gestos cristãos de primar pela vida espiritual em detrimento dos prazeres carnais.

Como exposto no Quadro, as almas que estão no Muro de Pedras Preciosas são as dos Profetas, Patriarcas, Mártires, Virgens, Confessores, Bispos e Arcebispos. No entanto, a versão portuguesa do manuscrito não menciona em detalhes sobre as ações que estas almas realizaram para merecerem o Muro de Pedras Preciosas. O que dizem sobre elas, nesse espaço, é a honra de se ter a companhia daqueles que passam por todos os prazeres e alegrias que tem e sabem assim como os anjos (Pereira, 1895, p. 118).

Mesmo que não haja uma explicação explícita sobre as obras cristãs que foram realizadas por esses eleitos, entendemos que a prática espiritual é um fator preponderante para a determinação das alocações dessas almas nesse Muro. Entenda-se aqui como prática espiritual intensa à comparação da vida angelical pela contemplação e louvação a Deus e que os aproximava dos ofícios exercidos por esse modelo de espiritualidade celeste, os anjos. Chegamos a esse indício pela própria explicação que o ente celeste apresenta ao cavaleiro de que todas essas almas dividem da mesma glória e de benesses comuns aos anjos, ou seja, contemplam e veem Deus da mesma maneira que os coros celestes.

Temos, portanto, algumas virtudes que, durante a Idade Média, incluíram algumas almas como exemplos de estados ideais de modelos de santidade, representando uma elite de eleitos, o que servirá de indícios para nós apontarmos alguns elementos que justificam a presença deles no Muro de Pedra Preciosa.

Comecemos pelos profetas da Bíblia, os Apóstolos e os Confessores, como sabemos, dedicaram suas vidas a serviço de Deus. Os Apóstolos eram verdadeiros seguidores de Jesus, tendo como característica especial os seus testemunhos oculares que acompanharam Cristo; os profetas possuem o dom da graça divina de interpretar e revelar a palavra de Deus; os confessores com a tarefa de confessar a fé e conceder aos fiéis a sentença para aliviar os seus pecados. Todos possuem as características exemplares que os enquadram na eleição de eleitos do Senhor pelos seus exercícios de função e de imitadores e de seguidores de Cristo.

Em relação às virgens e os virgens, a sua maior virtude foi manterem-se puros e castos e o próprio estado de virgindade se caracteriza como ideal para uma alma pura e digna de santidade. De acordo com Vauchez (1995, p.42): “a hierarquia dos estados de vida repousa, de fato, sobre o postulado de que a condição carnal é má: quanto mais afastado da carne – identificada aqui com a sexualidade – mais perfeito”. Quanto aos bispos e arcebispos, temos novamente a referência a membros da hierarquia da Igreja no lugar de grandes benesses espirituais que foram chamados pelas suas obras meritórias para junto de Deus.

O detalhe, nessas duas ordens no manuscrito, é a menção da identidade de alguns religiosos que são mencionadas, no caso, alguns bispos e arcebispos presentes neste lugar, todos eles ligados à Igreja irlandesa, terra natal do monge Marcus a quem se credita a tradução da narrativa.

Assim, Túndalo viu, no muro de Pedras Preciosas, São Patrício que foi arcebispo da Irlanda na companhia de outros bispos que não têm os seus nomes revelados no manuscrito. Ainda o cavaleiro olhou quatro desses que conhecia da vida terrena, como os arcebispos Artinatheno, Malachias, Menias e Inocêncio, conforme o autor anônimo da narrativa: “[...] e uio star san patrício arcebispo que foy de ybernia con gram conpanha de bispos antre os quaaes uio quatro que conhocia. S. O arcebispo arthinatheno. E malachias que foi arcebispo desposnelle que de Innocencio [...]” (Pereira, 1895, p. 119).

As descrições das obras realizadas por essas almas santas são as doações de todos os seus bens aos pobres, a qualidade de serem muito bons, castos, simples e guardarem para si somente aquilo que necessitavam, virtudes que justificam a presença deles no muro de Pedras Preciosas.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a análise do tema da justiça divina no Além na Visão de Túndalo, observa-se que esse manuscrito se caracteriza como um manual pedagógico e propagandístico de condutas religiosas cristãs para a salvação da alma, pois a estrutura exemplar da narrativa se preocupa com essa questão. As etapas do percurso do personagem viajante e de seu testemunho das ações, que levaram os eleitos e os danados aos seus méritos e deméritos em suas respectivas moradas no Além, anunciam aos seus receptores (leitores e ouvintes) as normas de comportamento, idealizado pela Igreja, que determinam os destinos de suas almas no Além-Túmulo.

E, para além disso, observamos como os comportamentos sociais no mundo dos vivos influencia nos destinos das almas no mundo dos mortos, isto é, as ações morais praticadas aqui embaixo, conforme os discursos cristãos, têm os seus reflexos no Além, seja para o bem ou para mal. Dessa maneira, Deus como o juiz supremo aplica uma sentença justa e proporcional tanto para aqueles que foram obedientes quanto para os que violaram as normas harmônicas do plano divino.

Neste sentido, compreende-se que a noção de justiça permeava a vida social na Idade Média e tinha uma estreita ligação com os ideais de justiça cristã. Não só no sentido de se centrar nos modelos de condutas que possuíam as suas glórias e as suas danações em futuro eterno próximo no Além-Túmulo, como nas próprias práticas de justiça aplicadas no plano terreno.

Portanto, no Medievo os seres humanos eram submetidos à justiça régia, como vimos no caso de alguns exemplos de monarcas da Dinastia de Avis, que exerceram a justiça para a busca de manutenção da ordem e da paz na sociedade. No entanto, levando em conta a narrativa investigada, essa justiça era considerada falível e, por essa razão, a justiça divina, como se acreditava, aplicava o julgamento aos humanos da justa maneira, isto é, implementando os castigos aos pecadores no Purgatório e Inferno, por um lado. Por outro, fornecendo as recompensas aos eleitos no Paraíso, conforme observamos na Visão de Túndalo.

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1 Doutora em História Medieval na Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-Doutorado em História no PPGHIST-UEMA (2022-2024). Bolsista da FAPEMA. Pesquisadora do Brathair (Grupo de Estudos Celtas e Germânicos) e do Mnemosyne. E-mail: solangepereiraoliveira22@gmail.com E-mail Pesquisa Institucional: brathairbr@gmail.com

2 A Visio Tnugdali possui mais de cento e cinquenta manuscritos em latim conservados e também foi traduzida para muitos idiomas vernáculos, como alemão, francês, inglês, holandês, espanhol, português, italiano, islandês, gaélico, entre outros. Os séculos XIV e XV foram muitos importantes na difusão do relato nos idiomas vernáculos. A narrativa também esteve entre os primeiros livros impressos (Palmer, 1982; Palmer, 1992, Zierer, 2017).

3 As versões portuguesas são textos mais resumidos da narrativa. Ambos os códices foram traduzidos por monges de Alcobaça e no mesmo período. Como o texto do códice 266 referente à Visão é menos detalhado, demos preferência pela análise do códice 244. Sobre essas edições, cf. (Oliveira, 2019, pp. 107-108).

4 Sobre Zacarias de Payopelle não se têm muitas informações sobre a vida dele e de sua ocupação para além da tarefa de tradutor no Real Mosteiro de Alcobaça. Este mosteiro foi um dos mais importantes de Portugal, onde os monges alcobacenses vertiam diversas obras escritas em diferentes línguas para o português.

5 As Ordenações Afonsinas foram elaboradas durante longos anos no século XV. Se encontram divididas em cinco livros, sendo o livro II que trata da relação entre a Igreja e a Coroa, com leis sobre o direito de cobranças e certos tributos e outros. Cf. Marques (1990, p. 282).

6 Sobre o uso do vocabulário jurídico nas narrativas de Visões, cf. Baschet (1995, pp. 177-179).