Specula Revista de Humanidades y Espiritualidad

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TRASLADO DAS SANTAS RELÍQUIAS EM PORTUGAL E NO BRASIL: UM FENÔMENO DE LONGA DURAÇÃO

TRANSLATION OF THE HOLY RELICS IN PORTUGAL AND BRAZIL: A LONG-LASTING PHENOMENON

José Carlos Gimenez1
Renata Cristina de Sousa Nascimento**

Fechas de recepción y aceptación: 24 de octubre de 2023 y 3 de diciembre de 2023

DOI: https://doi.org/10.46583/specula_2024.8.1125

Resumo: A posse de relíquias pode projetar simbolicamente um território como sagrado, protegido por Deus e por seus santos, através de algo táctil, visível, concreto, uma espiritualidade que passa pela materialidade e manifestação divina protetora de uma região e de um povo especial, considerado separado e escolhido. Diante da possibilidade de rememoração da Terra Santa (e de transposição de suas relíquias), o ocidente cristão medieval recriou e readaptou em seu território localidades que seriam reconhecidas como espaços sublimes, depositando aí vestígios especiais, que poderiam garantir a excepcionalidade dos lugares. Fenômeno de longa duração o traslado de corpos e objetos perpassa a história da religião cristã, desde seus primórdios. A promoção de cidades e santuários, garantida pela presença do divino táctil, produziu e solidificou o culto às relíquias. Os traslados dos restos sagrados se constituem em momentos importantes no fortalecimento deste culto, peregrinações, performances, rituais e símbolos corroboram para a emotividade deste movimento. Neste artigo temos a intenção de discutir o traslado das santas relíquias como um fenômeno de longa duração, tendo por estudo de caso o solenne recebimeto das Santas Reliquias, que forão leuadas da See de Coimbra, ao Real Mosteyro de Santa Cruz e a trajetória dos vestígios de Santa Dulce dos Pobres, a primeira mulher nascida no Brasil canonizada pela Igreja Católica, cujos restos corporais foram depositados na Capela das Relíquias, construída para este fim. Este conjunto de lembranças comuns é fator identitário, produto de uma tradição forjada, construída e gradativamente estabelecida.

Palavras-chave: Relíquias, Santidades, Permanências, Ritos, Santa Dulce dos Pobres.

Abstract: The possession of relics can symbolically project a territory as sacred, protected by God and his saints, through something tactile, visible, concrete, a spirituality that passes through the materiality and divine protective manifestation of a region and special people, considered separate and chosen. Faced with the possibility of remembering the Holy Land (and transposing its relics), the medieval Christian West recreated and readapted in its territory locations that would be recognized as sublime spaces, depositing special traces there, which could guarantee the exceptionality of the places. A long-lasting phenomenon, the transfer of bodies and objects has permeated the history of the Christian religion, since its beginnings. The promotion of cities and sanctuaries, guaranteed by the presence of the tactile divine, produced and solidified the cult of relics. The transfer of sacred remains constitutes important moments in the strengthening of this cult, pilgrimages, performances, rituals and symbols corroborate the emotionality of this movement. In this article we intend to discuss the transfer of holy relics as a long-lasting phenomenon, taking as a case study the solemn receipt of the Holy Relics, which were translated from the See of Coimbra to the Real Mosteyro of Santa Cruz and the trajectory of Saint Dulce dos Pobres, the first woman born in Brazil to be canonized by the Catholic Church, whose bodily remains were deposited in the Chapel of Relics, built for this purpose. This set of common memories is an identity factor, the product of a forged, constructed and gradually established tradition.

Keywords: Relics, Sanctities, Permanences, rites, Saint Dulce dos Pobres.

1. INTRODUÇÃO

O vocábulo relíquia é derivado do substantivo latino reliquiae e indica o que resta de algo. Na acepção cristã, a relíquia pode ser o corpo inteiro ou partes de uma pessoa, assim como objetos particulares, instrumentos que fizeram parte supostamente de seu martírio, ou ainda qualquer outro artefato material ou visual que possa estar ligado a uma pessoa considerada santa. Em um estudo sobre as relíquias e relicários no reino de Navarra, Garcia de Paredes (2014) afirma que uma primeira (e mais importante) apreciação, para quem estuda o tema das relíquias, é a de que elas não devem ser consideradas como simples objetos materiais ou memórias individuais, muito menos como meros restos mortais de uma pessoa distinta, pois sua importância transcende essas referências. Assim, a indiscutível santidade dessas veneradas personalidades sugere que tudo o que estivera em contato com sua pessoa passou por um processo de emancipação do profano, até atingir uma virtude sacralizada. À vista disso, uma relíquia deve ser entendida como a presença considerada real e contínua da relação entre o santo e os fiéis, pois é por meio dessa afinidade que se construiria a maneira como santos e santas são venerados, respeitados, desejados, preservados, já que são objetos de culto e atrativos potentes como salvaguardas do conforto espiritual. Em contato com a relíquia, o homem não questionava a experiência de uma comunicação ideal entre os mundos celeste e terrestre, uma vez que isso ocorreria de forma natural, afiançada por toda uma galeria de santos mediadores. Outra questão importante diz respeito ao tempo que separava o fiel e os restos de santos. O crente se sentia afastado por uma distância secular dos santos, a quem confiava as suas preces, as relíquias conseguiam anular essa distância tanto temporal, como temporal e física.

Neste aspecto, para os fiéis, as relíquias perpetuam a presença da sacralidade e representam uma materialidade eterna absolutamente ligada, ao mesmo tempo, à virtude imediata ou à espera de uma ajuda advinda destes vestígios. Assim, os lugares onde os corpos incorruptos, ou onde suas relíquias são acomodadas e expostas, ou simplesmente conservadas, tornam-se o lugar fundamental para suas ações milagrosas. Deste modo, em paralelo ao contato presencial entre o santo e o fiel, consolida-se a ocorrência das peregrinações, nas quais muitos buscarão obter benefícios graças às suas potencialidades sobrenaturais. É nessa busca por parte dos féis que se manifesta o desejo de alcançar, possuir e conservar relíquias dotadas de capacidades e virtudes e de favor divino, graças à intermediação milagrosa dos seus fragmentos (Urkola, 2011, pp. 186-197).

Segundo Bozoki (1996, p. 268), desde o início do culto às relíquias, possuir e controlar qualquer objeto relacionado a uma pessoa santa estavam ligados aos assuntos do poder. Por isso, nos séculos III e IV, uma das maiores prerrogativas da Igreja foi impedir que o poder das relíquias se convertesse em um acontecimento para servir aos interesses de determinada família, grupos e/ou instituições. Por outro lado, desde a Antiguidade Tardia, a partir do momento em que o culto às relíquias passou a identificar-se com uma comunidade, uma cidade ou uma região, elas foram, gradualmente, transformando-se no próprio símbolo da utilidade pública dessas comunidades, o qual se perpetua e se renova por meio das festividades, das procissões, entre outras manifestações. Assim, essas relíquias acentuaram o sentimento de solidariedade entre os patrocinadores celestiais, e seus protetores aqui na terra (Bozoky, 1996, p. 269).

Sobre o aproveitamento político das virtudes que lhes eram atribuídas, Garcia de Cortázar também assinala que, desde o início do crescimento da importância do culto às relíquias, travou-se uma luta entre as famílias aristocráticas e a Igreja pelos vestígios sagrados. À vista disso, a reação dos bispos a essa prática foi muito precoce, pois desde o século VI, existem testemunhos de que leigos poderosos desejavam “privatizá-las” para culto exclusivo, o que se tornou um dos motivos da intervenção dos prelados contra a gestão das relíquias; algo alcançado parcialmente, porque a posse de relíquias mais expressivas, “aquellas que constituían un instrumento público de sacralización y legitimación del poder, empezaran a quedar en manos de reis, obispos y grandes abadias” (Garcia de Cortázar, 2012, pp. 215-216). Edificações como basílicas, igrejas-cemitérios ou mosteiros de fundação episcopal entram no circuito das procissões dos principais santos geridos por estes espaços. Assim, esses lugares também se traduzem em locais simbólicos de apropriação e de exteriorização do sagrado (Paul, 2014, p. 129). Uma das referências mais importantes de manifestação pública do simbolismo das relíquias cristãs ocorrem por meio das procissões. Para Vinni Lucherini, as procissões das relíquias revelam-se como um dos atos performativos por excelência do sagrado e de sua exteriorização visual, nas quais a disposição ritual das sequências de gestos constitui um elemento fundamental. Quando esse ritual é utilizado, ele faz referência a um conjunto de normas que, conduzidas e reunidas por uma hierarquia eclesiástica, legitimam e validam ações concretizadas no curso de uma cerimônia religiosa. Nessas cerimônias, associado à transferência simbólica dos valores religiosos, a relíquia exige, necessariamente, dos fiéis um envolvimento social e sentimental. Desse modo, as implicações espaciais do território, em que a procissão ocorre, designam que as procissões das relíquias podem ser estudadas como parte complementar das investigações sobre rituais medievais, pois possibilita estudar várias categorias interpretativas da comunicação simbólica (Lucherini, 2018, pp. 10-11).

O uso público das relíquias como potencialidade religiosa foi largamente utilizado na Idade Média. Em Voyages de reliques et démonstration du pouvoir aux temps féodaux, Bozoky (1996, p 267-268) discorre sobre alguns exemplos com profundas implicações para a sociedade da época. Dentre os vários exemplos estudados por essa autora, pode-se citar a importância do simbolismo da “utilidade” das relíquias por meio de alguns relatos dos ataques vikings. Por antecipar a chegada dos normandos, os monges levaram consigo os objetos mais valiosos do mosteiro, sobretudo objetos santos, causando, assim, uma verdadeira ruína para a população que permaneceu, pois já não podia contar com a estabilidade mental para o seu conforto espiritual, assim como a certeza de uma proteção contra as más colheitas e epidemias. Outro exemplo diz respeito à importância destas em épocas de guerras, considerando que era comum o vencedor transferir muitas delas para o seu reino e, com isso, caso fosse cristão, também transferia os benefícios sobrenaturais que elas lhes proporcionavam. Dessa maneira, a relação entre utilidade e relíquia era reforçada por seu significado simbólico por meio de manifestações materiais e rituais. Diversas manifestações, acompanhadas de relíquias, ligadas ao poder do soberano, ocorreram em torno de celebrações, reuniões políticas e vários confrontos. A aquisição de novas relíquias como espólios de guerra, fruto de um simples sequestro ou até um presente de submissão, contribuíram para o fortalecimento de príncipes e imperadores (Bozoky, 1996, pp. 267-268).

Como podemos observar, o tema das relíquias sagradas possibilita muitas reflexões. Não podemos nos esquecer de que, para além do caráter intrínseco da sua relação com os fiéis, ou da função como reforço dos poderes de homens da Igreja ou do poder laico, elas também tinham outros valores e simbolismos, o que alimentou saques, comércio autorizado e/ou falsificações, intensificadas, sobretudo durante a Quarta Cruzada, quando a cidade de Constantinopla foi amplamente saqueada, suas relíquias foram importantíssimas para aquecer, ainda mais, o comércio de objetos sacros a partir do século XIII. É importante ressaltar que, do ponto de vista da fé, a procedência desses objetos, sejam eles obtidos de forma ilícita ou lícita, não tem muita importância para aqueles que as veem como corpos ou objetos transcendentes.

Com a difusão valorativa destes objetos muitos roubos de relíquias teriam sido justificados por ações de translação, ou mesmo pela ocorrência de milagres. Este fato revela o significado da posse destes tesouros espirituais, capazes de justificar ações como a venda, o roubo e mesmo a crescente falsificação (invenção) de relíquias. Elementos de fé e ao mesmo tempo de poder estes objetos raros e preciosos, independentemente de sua autenticidade, aproximam o ser humano da eternidade, rompendo a barreira entre tempo e espaço, tornando-se realidades materiais importantes na estruturação do território cristão, força que agrega, símbolo de fé que consegue através do maravilhoso alimentar a religiosidade popular, estabelecendo relações de sentido entre o visível e o invisível. (Nascimento e Costa, 2021, p. 42)

Neste sentido, para iniciar uma pesquisa sobre os usos políticos e espirituais das relíquias faz-se necessário contextualizá-las, percorrer seus itinerários, a forma como foram adquiridas, como foram depositadas em seu derradeiro local e, finalmente, como suas histórias alimentaram as hagiografias, as lendas, os mitos e narrativas diversas, entre outros.

Não poderíamos deixar de destacar o texto de Hernando Sebastián (2018, pp. 74-79) sobre o papel dos objetos sagrados no processo de reconquista, e de repovoamento dos reinos hispânicos, face à presença muçulmana. Apresentando os muçulmanos como os inimigos da fé, os cristãos lançaram mão de muitas relíquias para vinculá-las a um passado glorioso anterior à conquista do sul da Península no ano 711. Outra estratégia importante foi transformar muitos cristãos, mortos na luta contra os inimigos, em mártires, cujos restos mortais se tornaram referências à atitude cristã em relação aos inimigos da fé. Isso fez muitos bispos e reis, no desejo de possuí-las, percorrerem o território inimigo à procura de restos de corpos martirizados. A simbiose entre relíquias e mártires encontrou solo fértil na Península Ibérica medieval e não só deu origem a narrativas, mas também impulsionou muitos atos religiosos traduzidos em festividades e ritos. Outro ponto importante foi que, à medida que os exércitos cristãos recuperavam antigos terrotórios, transformavam os lugares onde as relíquias estavam localizadas em uma espécie de cruzada local.

2. PROCISSÕES E TRANSLADO DE RELÍQUIAS

Ocorrida no dia 29 de outubro de 1595, a procissão das transferências das relíquias transformou a cidade de Coimbra em palco de uma grande festa, que se estendeu por vários dias. O conteúdo dessa celebração foi escrito em forma de carta por Gaspar dos Reis2, estudante canonista que, a pedido de um amigo que ansiava saber todos os detalhes do recebimento destas, registrou com muita fidelidade e zelo as minúcias, que envolveram esse acontecimento. Publicado em abril de 1596 e contendo 402 páginas, o texto está digitalizado e disponibilizado publicamente pela Biblioteca Nacional de Lisboa, setor de obras raras. A obra está dividida em duas partes. A primeira parte está dedicada aos preparativos e aos detalhes da marcha que transportou as relíquias da Sé de Coimbra para o Mosteiro de Santa Cruz, em um cortejo de aproximadamente 600 metros. Na segunda parte, o autor descreve os eventos realizados após a celebração da transferência, sobretudo dos sermões a ressaltarem a importância do evento do dia anterior, assim como de Odes (poemas líricos), Elegias (poemas em versos), Epigramas (versos curtos) e Sonetos, a reforçarem a importância de homens e mulheres santos e seus despojos. Trata-se de uma fonte extremante rica e que possibilita várias reflexões, uma vez que condensa aspectos das procissões de relíquias que ocorriam anualmente, em memória a um determinado santo, e translado de corpos e objetos, com festas cívicas e religiosas citadinas do final da Idade Média. Como destaca Nascimento (2021, p. 38), esse mosteiro, edificado no século XII, cujas narrativas oferecem imprescindíveis informações sobre seus fundadores, é, sobretudo, um local que guarda importes relíquias para história da religiosidade portuguesa, como é o caso dos Mártires de Marrocos. Para tanto vamos ao estudo do documento, o qual evidencia a performance presente nos traslados, relatos fundamentais no entendimento das sensibilidades e das devoções. Indicações das piedosas coleções de relíquias e relicários presentes nos relatos, como do frei Gaspar dos Reis, nos oferecem um campo vasto de pesquisa e de reflexão sobre um patrimônio simbólico e espiritual, que expressa o vigor do culto às relíquias no contexto ibérico do século XVI.

Ao iniciar a descrição da procissão das transferências, Gaspar dos Reis evidencia estar diante de uma grande festa para despertar encantamento e devoção, uma alta e triunfal paragem aos olhos, dedicada a uma Igreja Triunfante e Militante [ênfase adicionada] (Gaspar dos Reis, 1596, p. 44), constituinte em figuras alegóricas, representações teatrais, estátuas e pinturas confeccionadas com joias e predarias a representar personalidades históricas, carros alegóricos, presença de clérigos e a anuência dos poderes eclesiásticos e civis (1596, pp. 101-110). Podemos perceber esta adesão ritualística e este triunfo logo no início do cortejo, onde os estandartes, a representarem os “espíritos danados” e os imperadores que outrora perseguiram os santos mártires, permanecem (conforme a narrativa), atados no inferno.

Primeiramente, o autor da carta relata os espaços por onde a procissão percorreria, com atenção e admiração aos seis grandes palcos construídos com arcos e colunas em madeiras talhadas e pintadas de vivas cores, ou suntuosamente decorações com tecidos e pó de ouro soprado. Descreve ainda que não havia rua que não tivesse tomada de gente de todas as partes a esperar pelo grande dia de amanhã. Também é digna de registro a decoração do mosteiro ricamente preparado para, no dia seguinte, receber as relíquias, pois todos queriam mostrar ao mundo quanto podia uma vontade e afeição nas coisas do eterno Deus [ênfase adicionada] (Gaspar dos Reis, 1596, p. 15), porém o que torna aquele local mais espetacular é a presença dos restos dos antigos reis portugueses.

Pela descrição do autor, foram utilizados quatro grandes andores, continuamente levados por mais de dez sacerdotes – sempre ricamente vestidos para carregarem os 21 relicários contendo crânios, costelas, dentes, dedos, tíbias, braços, pés, cabelos, vestes e muitos fragmentos de ossos de apóstolos, mártires de diferentes períodos, confessores, papas, freis, santos, santas, virgens, rainhas, perfazendo um total de 76 nomes.

O que é interessante nesse relato é o predomínio, em todo o texto, da atenção aos detalhes decorativos dos andores e dos relicários, assim como de muitas pessoas vestidas de santos, de personagens bíblicas, o que consagra, de certa maneira, a imagem dos santos ou das santas ali representados. Revela-se uma longa tradição memorativa das procissões medievais:

A título de exemplo, podemos ver, nas descrições de uma pessoa vestida de São Jorge,

[…] que a primeira figura que apareceu no terreiro foi a de São Jorge, tão airoso e tão bem armado que eu julguei o melhor. […] Vestia uma rica armadura inteira gravada de dourado, entre pretos esmaltes que lhe davam o maior lustre. A cabeça armada com um rico e fino elmo, cheio de muitas plumas de cores várias, assim como de outras dezenas de santos. (Gaspar dos Reis, 1596, pp. 49-50)

Também não havia contradição se fossem inseridas nos festejos cenas teatrais que remetessem à Antiguidade Clássica, intrínseco ao humanismo europeu e português que projetam sobre o presente e passado uma estética historiográfica específica para este contexto. Como evidenciado no relato sobre um menino de 12 anos:

[…] de gentil parecer, e que vestia à moda antiga como se costumava pintar Mercúrio entre os poetas. Levava um morrião (capacete) de lustroso aparato com muitas plumas de cores variadas. Vestia uma roupa antiga de veludo, forrada de cetim branco, tomada acima do joelho. Sutilmente, por onde se desviavam os nus, vestia sobre essa uma couraça de veludo azul […] na mão direita, levava um caduceu (bastão) de madrepérola com remates dourados […] levava asas nos ombros […] e nas articulações dos braços e pernas, levava chocalhos […] nos braços e pernas braceletes e grevas (partes da armadura que recobriam as pernas, do joelho para baixo) prateadas. Nos pés, levava alparcas antigas, cuja galantaria vencia quem não tinha. (Gaspar dos Reis, 1596, pp. 110-111)

A descrição da segunda personagem, dentre tantas, fazia parte do grande teatro armado para recepcionar a procissão e as santas relíquias. Também não deixam de ser emblemáticas diversas personagens vestidas alegoricamente a representar os valores sociais e morais da época: fama, tempo, justiça, trabalho, merecimento e virtude, entre outros. É interessante observar que, apesar da diversidade dos personagens, que em várias descrições lembram personagens da Commedia Dell’Arte dos séculos XVI e XVII, não havia espaço para a representação do cômico ou mesmo do grotesco.

Como afirmamos, o recebimento continuou por mais oito dias com os religiosos a rezar missas, fazer vigílias, acender círios e tochas. Também foi importante o concurso para selecionar as melhores obras literárias, como Odes, Elegias, Sonetos, Epigramas em louvor aos santos e seus vestígios terrenos, os quais foram incorporados ao texto da Relação. Nessas comemorações, duas personalidades se destacam: o bispo e conde D. Afonso de Castelo Branco e o Padre Miguel dos Anjos, Vigário Geral do Mosteiro. O primeiro pertencia à nobreza condal de Vila Nova de Portimão. Também foi bispo do Algarve, do Faro, onde foi responsável pela construção do Palácio Episcopal, da Casa e Igreja da Misericórdia. Como bispo de Coimbra, reconstruiu o Palácio Episcopal, a Igreja dos Jesuítas, hoje a Sé Nova da cidade, e o Convento das Carmelitas descalças. Foi um entusiasta pela canonização da Rainha Isabel, a destinar, inclusive em testamento, uma boa soma de dinheiro para este fim. Foi ainda deputado da Mesa da Consciência e Comissário da Bula da Santa Cruzada. Chegou até mesmo a ser nomeado vice-rei de Portugal por D. Felipe II, em 1603, porém exonerado no ano seguinte.

Aqui nos parece uma questão importante, ou seja, a forma como este bispo transitava entre corpos sagrados e instituições públicas. Colabora para este debate o texto de Kerbrat (1995, pp. 165- 185) sobre corpos de santos e controle cívico em Bolonha, do século XII ao início do século XIV, quando afirma que as relações entre corpos sagrados e instituições públicas também se realiza por meio do culto cívico - trabalho, justiça, tempo etc. - centrado na presença material dos restos mortais de santos, cujas manifestações exigem que as autoridades tenham acesso relativamente grátis e fácil a elas.

Afinal, para que serve uma relíquia, ou as relíquias, no contexto em que estamos discutindo? Cremos que uma resposta bem interessante possa ser dada pelo próprio vigário da Ordem, D. Miguel dos Anjos, por meio de sermão proferido no oitavo dia da cerimônia. Inicia a dizer que “as relíquias foram feitas para serem louvadas com muita alegria para o contentamento do Céu, sobretudo em momentos de grandes festas como esta que está por encerrar” [ênfase adicionada] (Gaspar dos Reis, 1596, p. 112). Considera que, para ser adorada, é preciso que uma relíquia tenha muito brilho e luz. Brilho como o sol; relíquia que Deus nos deu para dar a vida, assim como a luz divina presente na Virgem Maria, a quem os homens devem dirigir as suas preces. As narrativas tinham um papel central propagandístico promotor de legitimidade do tempo, espaço, pessoas, grupos e poderes. A relação entre memória, identidade e poder é central neste tipo de fonte.

Com citações e parábolas bíblicas, D. Miguel do Anjos discorre sobre vários temas que julga importantes para uma correta existência cristã, mas sempre tomando como exemplo a vida de homens e mulheres santos, que têm seus despojos depositados no mosteiro. Para exemplificar o caráter pedagógico do sermão, tomamos como exemplo discurso proferido sobre o pecado da carne. Diferentemente dos mortais que perecem devido ao pecado original, a incorruptibilidade dos corpos santos é uma excepcionalidade e graça concedida por Deus para que homens e mulheres façam deles exemplos de vida a seguir e intercessores da divindade. Também afirma que a promoção da procissão das relíquias é estimada por Deus, já que, diante de tanta pobreza que existente no mundo, Ele se alegra com os benefícios que elas ofertam aos homens, benfeitorias que podem ser encontradas nas relíquias menores, uma vez que é justamente pela sua pequenez que os santos mostram suas virtudes e suas grandezas. Como afirma Umberto Eco, “[…] os olhos são feridos pelas relíquias cobertas de ouro e logo se abrem as bolsas. Mostra-se uma belíssima imagem de um santo ou santa e os santos são julgados tanto mais santos quanto mais vivamente coloridos []” [ênfase adicionada] (2010, p. 16). Assim, as relíquias do mosteiro, agora acrescidas com novas peças, continuam, desde a sua fundação, a sustentar o papel religioso e sacralizado da Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, “uma casa que Deus, logo no princípio de sua fundação, honrou e enriqueceu com tantos e tão ricos tesouros de relíquias de Santos, […] assim mesmo por essa causa, e razão, continuar com essas mercês, dando hoje essa nova que merecemos” (Gaspar dos Reis, 1596).

A segunda parte do Sermão é dedicada ao próprio Mosteiro de Santa Cruz, à cidade de Coimbra e ao reino de Portugal e, como não poderia deixar de ser, à exaltação desses lugares como depositários das sagradas relíquias. Ditoso Portugal, ditosa Coimbra e ditosa esta Santa Casa, pois tirando Deus estes Santos de suas terras, não quis fiar a outrem, senão a Nação portuguesa. E nela de nenhuma cidade senão Coimbra, e em Coimbra nenhuma casa senão desta Santa [ênfase adicionada] (p. 87v).

É sempre um grande desafio estudar essa tipologia de fontes. Embora pareçam idênticas, há que se considerar semelhanças e diferenças e precisões periódicas referentes a determinados santos, uma vez que muitas procissões possuem uma longa história com rituais que se repetem anualmente, ainda que possam, ao mesmo tempo, não estarem isentas de serem contaminadas por novos elementos simbólicos e performáticos, principalmente porque são organizadas pelas hierarquias do clero e, às vezes, com auxílio de outras instituições que também mudam com o passar dos anos. Por sua vez, uma procissão de transferência de relíquias, como a Relaçam do solenne recebimeto [sic] das Santas Reliquias, que forão leuadas da See de Coimbra, ao Real Mosteyro de Santa Cruz (1596), analisada, por exemplo, na perspectiva política, também pode dizer muito sobre o tempo presente da sua própria produção.

3. PROCESSO DE CANONIZAÇÃO E AS RELÍQUIAS DE SANTA DULCE DOS POBRES

Outra forma de controlar o fenômeno da santidade foi a instituição dos processos de canonização, uma estratégia do papado para reafirmar a sua autoridade. Por meio de tais processos, a Igreja Romana procurava indicar quem poderia ser venerado por todo a comunidade de fiéis. Tais processos, cada vez mais organizados, surgiam, em alguns casos, por iniciativa do próprio pontífice ou de demandas locais. Testemunhos eram coletados e a fidelidade à Igreja e as virtudes eram testadas. Em alguns casos, as canonizações eram finalizadas rapidamente, como no caso de Antônio de Pádua/Lisboa. Em outros, levaram séculos, como no caso de Joana D´Arc, que primeiro foi reabilitada, em meados do século XV, já que anteriormente havia sido condenada como herética, e só canonizada em 1924.

Mas a despeito das iniciativas papais, ou reforçadas pelas canonizações, produziu-se um verdadeiro mercado sagrado: caminhos que conduziam ao encontro da sacralidade palpável, uma verdadeira cultura material do religioso, foram traçados. Cidades tornaram-se célebres, reunindo homens e mulheres em atitude expiatória e de devoção, ocasionando grandes celebrações litúrgicas. A tradição presente nestes espaços fundantes tornou-se a base do cenário histórico - devocional, que foi e é constantemente revivido em diversas regiões. Assim, pela perspectiva dos fiéis, a devoção aos santos é marcada por dois fenômenos históricos de grande visibilidade e reverberações: as peregrinações e o culto às relíquias. Neste momento, vamos nos deter nos lugares e vestígios considerados sagrados pelos cristãos-católicos, com foco em santos canonizados e beatos em processo de canonização, que fazem parte da cultura e religiosidades no Brasil. O modelo interpretativo escolhido pauta-se nas reflexões de Halbwachs (1941), para quem o estudo da topografia e da memória ligada aos lugares e personagens representam uma construção coletiva, uma memória afetiva, resultante de um grupo social. O passado se reatualiza na memória coletiva, na medida em que os ritos e objetos perpetuam as lembranças de uma narrativa divina, fundamental como elo agregador para os fiéis.

Quanto à comparação, nos inspiramos em Jurgen Kocha; O historiador alemão propõe que a comparação em pesquisas históricas possui quatro funções: heurísticas, descritivas, analíticas e paradigmáticas. Destas, uma se aplica diretamente à essa pesquisa, já que busca combinar estudos de casos, ocorridos em diversas temporalidades, mas que tem como fundamento a questão da devoção aos santos. Segundo o autor: “Descritivamente, as comparações históricas ajudam a esclarecer os perfis de casos singulares, frequentemente apenas de um caso, pelo(s) seu(s) contraste com outros” (2014, p 180). O especialista ainda acrescenta: a comparação não somente ajuda a sustentar noções de particularidade, mas é também indispensável para desafiar e modificar tais noções. Essa afirmativa sintetiza a nossa proposta: comparar para detectar singularidades, mas também aspectos constantes.

Dentre o mosaico de representações do sagrado no Brasil escolhemos analisar os processos de construção da santidade de personagens canonizados pelo papado, dando destaque à beatificação e canonização de irmã Dulce, personagem fundamental para o entendimento da religiosidade católica brasileira. Irmã Dulce foi denominada Santa Dulce dos Pobres e se tornou uma das primeiras mulheres nascidas no Brasil a serem canonizadas pela Igreja Católica, marcando a institucionalização de uma personagem que carregava em vida fama de santidade. Hibridismo, sincretismo e religiosidade popular são marcas culturais da vivência identitária brasileira, em suas diversas expressões. Estes conceitos, que carecem sempre de uma análise aprofundada, estão presentes no ato de crer da população brasileira ainda nos dias atuais.

Maria Rita de Sousa Brito Lopes Pontes (Irmã Dulce) nasceu em Salvador em maio de 1914 e faleceu na mesma cidade, em 1992. Após se formar como professora (1932), Maria Rita entrou para a Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, na cidade de São Cristóvão, em Sergipe (1933). Sua primeira missão como religiosa, já de volta a Salvador, foi ensinar em um colégio mantido pela sua congregação, na Cidade Baixa, além de também assistir as comunidades pobres da região. Com 22 anos, fundou, com Frei Hildebrando Kruthanp, a União Operária São Francisco, primeiro movimento cristão operário da Bahia. Irmã Dulce inaugurou o Colégio Santo Antônio, voltado para os operários e seus filhos. No mesmo ano (1939), para abrigar doentes que recolhia nas ruas, Irmã Dulce invadiu cinco casas abandonadas na Ilha do Rato, localidade de Salvador (Bahia). Depois de ser expulsa do lugar, teve que peregrinar durante uma década, instalando os doentes em vários lugares, até transformar em albergue o galinheiro do Convento de Santo Antônio, que mais tarde deu origem ao Hospital Santo Antônio.

Segundo a memória biográfica, produzida pelas pessoas que conviveram diretamente com a santa, dentre seus sacrifícios excepcionais, por trinta anos dormiu em uma cadeira de madeira, cumprindo a promessa feita em 1956 para que sua irmã (chamada Dulce) sobrevivesse a uma gravidez de alto risco. Em 1988, foi indicada para o Prêmio Nobel da Paz, pelo então presidente do Brasil José Sarney, com o apoio da rainha Silvia da Suécia (Aragão, 2015, pp. 66-75).

Considerada pela população como o “anjo bom da Bahia”, morreu em seu quarto, de causas naturais, aos setenta e sete anos, em março de 1992. Seu corpo foi sepultado no alto do Santo Cristo, na Basílica de Nossa Senhora da Conceição da Praia e depois transferido para a Capela do Hospital Santo Antônio, centro das Obras Sociais Irmã Dulce. Em 2000, foi distinguida pelo Papa João Paulo II com o título de Serva de Deus. Em 2010, deu-se a exumação e translado das relíquias da Irmã Dulce para a Capela definitiva, na Igreja da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, hoje, Santuário Santa Dulce dos Pobres.

O processo de beatificação de Irmã Dulce tramitou na Congregação para as Causas dos Santos do Vaticano. Ela foi beatificada em 2011 pelo enviado especial do Papa Bento XVI, Dom Geraldo Majella Agnelo, em Salvador, e canonizada em 13 de outubro de 2019 pelo Papa Francisco com o título de Santa Dulce dos Pobres, sendo a primeira santa mulher nascida no Brasil. O processo de Canonização de Irmã Dulce é o terceiro mais rápido da história recente (27 anos após seu falecimento)3. Irmã Dulce já havia sido canonizada no coração e alma dos brasileiros muito antes do ano de 2019, quando o Vaticano atribuiu seu segundo milagre. O processo de canonização, em seus múltiplos aspectos, refletem o desejo de valorização de um modelo. A dedicação de Irmã Dulce aos pobres é muito coerente com o forte caráter social que a Igreja assumiu sob a liderança do atual pontífice (Rocha, 2019, p. 226).

4. DAS RELÍQUIAS DE IRMÃ DULCE

A maior relíquia de Irmã Dulce é o corpo da santa que está localizado atualmente no Santuário de Santa Dulce dos Pobres, em Salvador (Bahia). Existem também diversos fragmentos e objetos ligados à história de sua vida, que ficam transitando entre várias igrejas e paróquias em todo território brasileiro, chamadas de relíquias peregrinas. A santa desejava ser sepultada no cemitério Quintas dos Lázaros um lugar simples, ao lado dos mais pobres. O cardeal arcebispo à época, e várias personalidades religiosas e políticas, pediram aos seus familiares que seus despojos corporais fossem inicialmente para a Basílica de Nossa Senhora da Conceição da Praia, em Salvador. Esse processo não foi linear e, como foi mencionado, foi disputado por diversos seguimentos sociais e políticos, refletindo os usos que podem ser atribuídos aos vestígios sagrados. Sobre a lápide sepulcral foi gravado: Irmã Dulce, mãe dos abandonados; todos nós. O artista plástico Carybé esculpiu-a com um voo de andorinhas (Passarelli, 2019). As relíquias são evocadas como produtoras de memória, que validam um passado de excepcionalidade, solidificando os lugares santos e os personagens singulares que constituem a identidade de uma região. Devotos de uma espiritualidade táctil e visível, os fiéis buscavam proteção, auxílio e alívio em algo concreto, que representasse o transcendente, o espiritual.

Figura 1. Capela das Relíquias (Salvador-Bahia) local atual das relíquias corporais de Santa Dulce dos Pobres

Fotografia retirada do site do Santuário de Santa Dulce https://www.irmadulce.org.br/santuario/página/conteudo/santuario

O traslado das relíquias de Irmã Dulce teve como propósito mais evidente a beatificação e santificação da freira, chamada popularmente com o epíteto de Anjo Bom da Bahia, e do Brasil. De acordo com reportagem do Jornal Grande Bahia, publicada em 10 de junho de 2010;

Em Salvador, 400 fiéis passaram a madrugada de ontem na Igreja da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, em Salvador, em vigília para homenagear a Irmã Dulce. A solenidade católica com objetivo de transladar os restos mortais da freira Irmã Dulce, faz parte do processo de beatificação e foi celebrado pelo arcebispo primaz do Brasil e cardeal de Salvador, dom Geraldo Majella Agnelo. Após a missa, o corpo da baiana foi sepultado em definitivo, na Capela das Relíquias, construída dentro da mesma igreja – exumado da igreja no último 27 de maio, estava mumificado e seu traje de freira, preservado. (Jornal Grande Bahia, 2010, p. 2)

A relação entre o catolicismo institucionalizado e as manifestações de devoção popular constituem uma marca da cultura religiosa brasileira, que assume característica sincrética, forjada ao longo do tempo em razão de práticas de exclusão e preconceito (Adam e Woitowicz, 2022, pp.76-80). Santos populares (nem sequer beatificados), são bastante comuns na história religiosa brasileira. Por seu lado, o catolicismo oficial tenta domesticar e institucionalizar as grandes devoções populares, como no caso de Santa Dulce dos Pobres, que é reconhecida em suas práticas caritativas e obras sociais. Os objetos associados à sua vida fazem parte do cenário de sua história, que para seus seguidores é uma narrativa bela e perfeita contida em suas biografias e hagiografias, muitas ainda em construção. Portanto suas relíquias possuem essência singular, mesmo sublime. Para os fiéis, estar em contato com os restos mortais de Santa Dulce dos Pobres é uma forma de tocar em sua santidade, portanto seu simbolismo é inesgotável, inexplicável.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante cerimônia de canonização da santa em Roma, ocorrida em outubro de 2019, um fragmento de um osso da sua costela foi oferecido ao Papa Francisco, para ser guardado na Capela das Relíquias no Vaticano. Atualmente os fiéis podem conseguir gratuitamente um pequeno pedaço do hábito da religiosa, considerada uma relíquia de segundo grau. Esta prática nos mostra a vitalidade do culto das relíquias entre os fiéis cristãos, e a extrema popularidade de irmã Dulce. Os vestígios santos representam a “tactibilidade” do sagrado, o sobrenatural ao alcance dos olhos e das mãos. O culto e o traslado de relíquias são um fenômeno de longa duração, e oferecem uma dimensão atemporal, se constituindo em um grande desafio aos pesquisadores e estudiosos da santidade popular ibérica e brasileira.

A criação dos lugares sagrados, a atribuição de poderes sobrenaturais a pessoas e objetos, estão ligados à ação simbólica que o homem desenvolve através de processos que indicam a organização de um espaço socializado e que representa a própria espiritualidade, estabelecendo um elo entre sagrado e profano, e suas relações. O estudo do traslado de relíquias é a expressão da vitalidade de seu culto, um elo entre passado e presente,

6. REFERÊNCIAS

6.1. Fontes

Gaspar dos Reis (1596). Relaçam do solenne recebimeto [sic] das Santas Reliquias, que forão leuadas da See de Coimbra, ao Real Mosteyro de Santa Cruz: he carta coriosa, que se escreueo da Uniuersidade a hum amigo / per hvm sacerdote canonista. Casa de Antonio de Mariz.

G1. (2019, 13 de outubro). Irmã Dulce é canonizada pelo Papa Francisco e se torna a primeira santa brasileira. https://g1.globo.com/ba/bahia/irma-dulce/noticia/2019/10/13/irma-dulce-e-canonizada-pelo-papa-francisco-em-missa-no-vaticano.ghtml

Redação do Jornal Grande Bahia (2010, 10 de junho). Solenidade marca translado das Relíquias de Irmã Dulce e objetiva a beatificação e santificação da freira. Jornal Grande Bahia. https://jornalgrandebahia.com.br/2010/06/solenidade-marca-translado-das-reliquias-de-irma-dulce-e-objetiva-a-beatificacao-e-santificacao-da-freira/

6.2. Bibliografia

Adam, F. et Woitowicz, K. J (2022). As mulheres e os valores religiosos na biografia de Santa Dulce dos Pobres. Líbero, 25 (51), 76–90.

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1 Professor de História na Universidade Estadual de Maringá (UEM), e membro participante do Núcleo de Estudos Mediterrânicos (NEMED), UFPR. E-mail: jcgimenez@uem.br.

** Doutora em História pela UFPR. Professora titular da Universidade Federal de Jataí, Pontifícia Universidade Católica de Goiás e Universidade Estadual de Goiás. Coordenadora do grupo Sacralidades Medievais. Coordenadora da Rede de Pesquisa Sobre Arte e História das Relíquias Cristãs Ibéricas (CNPq). Pós- doutoranda em História Comparada (UFRJ). E-mail: renatacristinanasc@gmail.com.

2 Ver: REIS, Frei Gaspar dos. RELAÇAM | DO SOLENNE | RECEBIMENTO DAS | Santas Reliquias, que forão leuadas | da See de Coimbra, ao Real | Mosteyro de Santa Cruz. | HE CARTA CORIOSA, QVE SE | Escreveo da Vniversidade a hum amigo. | PER GASPAR DOS REIS DE LEYRIA, Bacharel Canonista.- Em Coimbra: Em Casa de Antonio de Mariz, Com licença da Sãta Inquisição, & Ordinario,1596.

3 A data da canonização – domingo, 13 de outubro de 2019 – coincidiu com o dia em que se completavam seis anos e sete meses do pontificado de Francisco. Um dia antes, comemorou-se a festa de Nossa Senhora Aparecida, a “Padroeira do Brasil, e, ainda, os 88 anos do monumento ao Cristo Redentor, edificado no morro do Corcovado, no Rio de Janeiro (RJ), considerado uma das sete maravilhas do mundo moderno. Além de Irmã Dulce, foram canonizados, na mesma data, o teólogo e cardeal inglês John Henry Newmann – um dos principais intelectuais cristãos do século 19 –, a religiosa italiana Giuseppina Vannini, a religiosa indiana Mariam Thresia Chiramel Mankidiyan e a catequista suíça Margherita Bays Destaca-se o fato de quatro mulheres figurarem entre os cinco canonizados, o que revela o reconhecimento de religiosas pela Igreja, contrastando, de certo modo, com um processo de exclusão sustentado historicamente e reproduzido pela hierarquia católica (Adam e Woitowicz, 2022, pp. 76-90).