Specula Revista de Humanidades y Espiritualidad

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HERESIA E SANTIDADE NOS REGISTROS ECLESIÁSTICOS SOBRE MULHERES NO SÉCULOS XIII: UM ESTUDO COMPARADO DOS CASOS DE CLARA DE ASSIS E GUGLIELMA DE MILÃO

HERESY AND HOLINESS IN THE ECCLESIASTIC RECORDS ABOUT WOMEN IN THE 13TH CENTURY: A COMPARATIVE STUDY OF THE CASES OF CLARE OF ASSISI AND GUGLIELMA OF MILAN

Andréa Reis Ferreira Torres1

Fechas de recepción y aceptación: 15 de junio de 2022 y 5 de diciembre de 2022

DOI: https://doi.org/10.46583/specula_2023.1.1090

Resumo: É objetivo do presente artigo apresentar um debate sobre a constituição dos processos de canonização e de inquisição como instrumentos de exercício de poder eclesiástico que buscava normatizar a vida religiosa, em particular a feminina, a partir do século XIII. Para realizar tal exercício, partimos de dois documentos, o Processo de Canonização de Clara de Assis (1255) e o Processo inquisitorial contra os Devotos e as Devotas de Santa Guglielma (1300). Em outras palavras, nos interessa verificar a forma pela qual a santidade e a heresia são associadas às mulheres nos registros das fontes e debater a construção das categorias de santa e herege a partir dos registros processuais que, em seu tempo, as definiram como tal.

Palavras-chave: Santidade, Heresia, Clara de Assis, Guglielma de Milão, Península Itálica, Século XIII

Abstract: The aim of this article is to present a debate on the constitution of the processes of canonization and inquisition as instruments for the exercise of ecclesiastical power that sought to normalize religious life, particularly the female one, from the 13th century. To carry out this exercise, we started with two documents that we have been studying in our doctoral research, the Process of Canonization of Clare of Assisi (1255) and the Inquisitorial Process against the Devotees of Saint Guglielma (1300). In other words, we are interested in verifying the way in which holiness and heresy are associated with women in the records of the sources and debating the construction of the categories of saint and heretic based on the processual records that, in their time, defined them as such.

Keywords: Sainthood, Heresy, Clare of Assisi, Guglielma of Milan, Italian Peninsula, 13th century

1. INTRODUÇÃO

Quem é santo e quem é herege? Pode-se dizer que tal formulação dicotômica, com todas as consequências em termos de organização discursiva e social, foi uma das preocupações centrais das autoridades religiosas ao longo de toda a história do cristianismo. Estas não são categorias dadas ou homogêneas ao longo do tempo, mas antes construções elaboradas dentro do regime de verdade em vigência quando da sua constituição.2 No que concerne ao cristianismo, ambas as categorias estavam presentes desde os primeiros movimentos de organização eclesiástica. Com o passar do tempo, as expressões da espiritualidade vão aos poucos sendo definidas como ortodoxas ou não ortodoxas, o que permitiria formular um credo único naquilo que se propõe como uma Igreja Universal, católica (Zerner, 2017, p. 561).

Ora, se é óbvio que o credo único nunca existiu e que a definição de ortodoxo esteve sempre em disputa, são as relações institucionais de poder que vão estar na base da definição do que é – em ordem hierárquica – exemplar, aceito ou rejeitado no seio da Igreja Romana. As partes que compõem a disputa pela verdade são as autoridades exercidas, em constante negociação pelo reconhecimento de sua legitimidade, e os instrumentos usados por essas autoridades, os quais vão se tornando mais complexos e amplos em termos de alcance conforme se acentua o processo de institucionalização dessas autoridades.

O conceito de instituição é aqui, portanto, central e pode ser compreendido, de acordo com Frazão da Silva (2019, p. 70), como:

[...] organização que apresenta elementos estáveis, tais como cargos, hierarquias, rituais; envolve diversas pessoas com diferentes funções, responsabilidades e esferas de ação; possui fundamentação em normas; é reconhecida socialmente; exerce autoridade sobre grupos sociais; estabelece vínculos com outras instâncias e participa em múltiplas relações de poder, por meio dos membros que a compõem tanto nas relações internas quanto na relação com outras organizações.

A hierarquia eclesiástica, ao longo da chamada Idade Média Central, mais particularmente no século XIII, pode ser caracterizada por um esforço de centralização e de universalização a partir de uma atividade de normatização de crenças e práticas religiosas que se fez notar em diversos instrumentos jurídicos surgidos no período, como os processos de canonização e inquisição. Muito embora o controle da santidade e a repressão à heresia não possam ter sua origem datada no século XIII, foi neste século que surgiu uma novidade, relacionada à sistematização jurídica (Kleinberg, 2004, p. 63), que tornava possível investigar e analisar provas de santidade e de heresia, fazendo do processo não simplesmente um conjunto de pressupostos para a definição de uma sentença, mas uma peça jurídica que permitia analisar diversos aspectos de uma sociedade.

Paralelamente, nesse mesmo contexto, é possível perceber que o desenvolvimento da vida urbana por volta do final do século XII fez surgir uma nova gama de movimentos religiosos, sobretudo relacionados aos ideais de pobreza evangélica e à pregação itinerante. Tais movimentos eram formados principalmente por leigos, que buscavam novas formas de manifestar sua religiosidade (Bolton, 1985, p. 63), dando espaço para a vivência de uma espiritualidade associada à vida apostólica que, logo, fazia proliferar uma insatisfação com a hierarquia eclesiástica, caracterizada por vozes dissidentes como corrupta e opulenta.

Em meios a essas transformações nos ideais de espiritualidade, surgiram as ordens mendicantes, o espaço privilegiado para viver de acordo com o ideal de pobreza evangélica e, ainda assim, estar inserido no seio da Igreja. Essas ordens acabaram por receber apoio papal justamente por sua posição intermediária e mediadora entre a Sé romana e a religiosidade propriamente urbana. Os mendicantes estavam habilitados a exercer a pregação itinerante e viviam em pobreza, sem, contudo, escapar à ortodoxia e sendo, inclusive, os principais encarregados de combater a heterodoxia.

A preocupação do papado com os novos movimentos associados a desvios doutrinários levou à implantação de um sistema jurídico inquisitorial, concentrado nas mãos dos Frades Pregadores. Mas esta medida não foi isolada. Dentro das iniciativas papais de expansão da abrangência de seu exercício de poder, outros aparatos jurídicos foram criados ou tiveram suas atividades ampliadas e desenvolvidas. Além da prerrogativa de decidir quais crenças e práticas poderiam ser consideradas heréticas, o papado também buscou reservar para si o direito de investigar a fama de santidade de um candidato ao reconhecimento oficial, antes sob a responsabilidade dos bispos em atividade na região de origem ou de atuação do santo em questão (Arnaldi, 2002, p. 583).

Nesse artigo, apresentamos reflexões da análise de dois desses instrumentos jurídicos de tipo inquisitorial. A partir desses registros, nos vemos diante de duas mulheres que, no século XIII, foram alçadas a categorias distintas: Clara, que foi reconhecida oficialmente como santa, e Guglielma, que, a despeito do culto recebido por parte de diversos setores da sociedade milanesa, foi condenada, mesmo após a morte, como herege.

Os depoimentos frutos do inquérito podem mostrar, a partir da desconstrução de seus enunciados, os níveis - ou camadas - em que a santidade é construída. Ou seja, a convivência com Clara e Guglielma ainda em vida, a memória que é elaborada sobre elas, e o culto que se estabelece. Esses níveis, no entanto, não se superam ou são temporalmente separados. A eles se soma um quarto, que é o da abordagem dos clérigos a partir das perguntas elaboradas e das respostas registradas. Salientamos que, no caso da heresia, esta vai estar presente apenas nesse último nível: na percepção que a autoridade eclesiástica tem daquilo que os depoentes relatam, criando, como afirma Marina Benedetti (2004, p. 75), uma imagem de Guglielma “ao negativo”.

2. A CARACTERIZAÇÃO DE CLARA DE ASSIS EM SEU PROCESSO DE CANONIZAÇÃO

Clara viveu de 1194 a 1253 na cidade de Assis e, segundo a tradição, foi a fundadora do ramo feminino da ordem dos franciscanos. Pertencia a uma família nobre, mas rompeu laços aos 18 anos, fugindo de casa para se juntar a Francisco de Assis e seus frades menores. Os relatos a respeito de sua vida a caracterizam como alguém que buscou sempre o ideal da vida evangélica, propondo uma forma de vida para o grupo de religiosas que se formou ao seu redor. Foi justamente nesse ponto, na sua busca por transpor os ideais franciscanos para a religiosidade feminina, que se constituiu o maior interesse sobre ela. Ela conseguiu implementar, mesmo que apenas para o caso de São Damião e, talvez, algumas comunidades mais diretamente ligadas a ele, uma forma de vida tida como original, pois transpôs os ideais franciscanos pela primeira vez para uma vida claustral e após intensa negociação com o papado, manteve as críticas de Francisco à riqueza e às posses (Pedroso, 2004, p. 20).

O processo de canonização de santa Clara foi transmitido por um códice no qual estão registrados os depoimentos de vinte testemunhas interrogadas no período de 24 a 28 de novembro de 1253. O processo foi instalado pelo bispo Bartolomeu de Espoleto no claustro de São Damião, a partir da bula Gloriosus Deus de 18 de outubro do mesmo ano, na qual o papa Inocêncio IV ordenava ao dito bispo o início dos procedimentos referentes à canonização de Clara (Pedroso, 2004, p. 61). Atualmente, o processo encontra-se na Biblioteca Nacional de Florença, sob a referência Fondo Landau-Finaly 251, e contém a totalidade das atas preservadas em sua tradução para dialeto umbro datada do século XV e atribuída à religiosa Batista de Alfano. O documento permaneceu desconhecido até o século XX, quando Zefferino Lazzeri (1912 e 1920) o identificou e publicou.

Em decorrência das transformações ocorridas na virada do século XII para o XIII, o papado realizava, contemporaneamente ao início do movimento franciscano, novos esforços para a regulamentação da vida religiosa feminina. Desde o fim do século XII, houve um aumento significativo na quantidade de mulheres que optavam por uma via diferente daquela tradicionalmente atribuída a elas, como esposas e mães ou religiosas em grandes abadias, seguindo o caminho de uma vida religiosa de pobreza e piedade que, em contrapartida, às afastava de um controle mais direto exercido pelos homens (Dinzelbacher, 1993, p. 5).

Com a abertura de novas possibilidades de vivência religiosa, este período viu crescer uma ambiguidade discursiva que fazia com que coexistissem vozes de apoio e de condenação à experiência religiosa feminina. Esta questão está diretamente relacionada àquela do combate às heresias, vital para a contínua construção da ortodoxia. A necessidade de regulamentação da vivência religiosa de mulheres tinha, assim, dois vieses: a legitimação de modelos adequados aos padrões aceitos pelo papado e a consequente delimitação da fronteira entre ortodoxia e heterodoxia (Bynum, 1984, p. 18).

Uma das questões principais que faziam parte das preocupações inseridas nas medidas de regulamentação da religiosidade feminina era aquela referente à clausura. Tal restrição, segundo clérigos e religiosos servia como uma forma de proteção às mulheres que viviam em comunidade. É apontado, inclusive, que a criação da Ordem das Damas Pobres pelo cardeal Hugolino foi uma iniciativa para organizar, dentro de uma mesma ordem, as diversas comunidades religiosas formadas por mulheres e que tinham estatutos bastante variados (Grundmann, 2005, p. 113).

A documentação franciscana que menciona Clara e as Damas Pobres3 dá indícios de que anteriormente à iniciativa de regulamentação do papado, o objetivo da nova comunidade não era a vida de modelo monástico, baseada na Regra Beneditina, mas sim a formação de uma fraternitas, muito assemelhada àquela das beguinas (Manselli, 1980, p. 244). Contudo, a proibição de criação de novas ordens religiosas no IV Concílio de Latrão, a prescrição da Regra de São Bento para São Damião por Hugolino e a imposição da clausura colocaram a comunidade no padrão de um mosteiro feminino tradicional, não obstante a observação rigorosa do ideal pauperístico.

2.1. A vida comunitária das damas pobres e os atributos de santidade de Clara

O grupo reunido ao redor de Clara vivia em uma comunidade fechada. No entanto, a ideia de clausura era por ela entendida como um afastamento das coisas mundanas para a entrega e a contemplação de Deus, ao contrário da noção de isolamento e silêncio promovida pelos membros do corpo eclesiástico como uma imposição à vida religiosa feminina da época (Pedroso, 2004, p. 105). No processo de canonização, as irmãs relatam situações cotidianas que parecem apontar para uma relação da comunidade com o mundo exterior, que deveria ser evitada, mas não abolida. No testemunho da Irmã Angelúcia, lemos que:

[...] quando a santíssima mãe enviava as irmãs servidoras fora do mosteiro, exortava-as a que, vendo as árvores, floridas e frondosas, louvassem a Deus; e semelhantemente, quando vissem os homens e as outras criaturas, sempre louvassem a Deu por todas e em todas as coisas (Pedroso, 2004, p. 107).

O afastamento era considerado mais uma questão espiritual do que institucional. Também nas cartas à Inês, Clara não demonstra a preocupação em afastar as mulheres de pessoas externas ao convento no sentido da preservação da virgindade e se mostra ciente e não contrariada com o fato de que as irmãs de Praga trabalhavam em um hospital anexo ao mosteiro (Pedroso, 2004, p. 208).

A questão da pobreza é também para a comunidade reunida ao redor de Clara um traço essencial de sua espiritualidade e base da vida em comum. Não sem enfrentar alguma resistência, Clara conseguiu do papado a aprovação para viver sob o voto de absoluta pobreza. Sua intenção de seguir os ideais franciscanos foi evitada pela Cúria, pois esta não acreditava que essa forma de vida fosse adequada para mulheres.4

No que concerne à percepção da santidade de Clara como um fenômeno mais amplo, ou na particularidade do elemento do voto de pobreza, é possível fazer uma comparação entre a perspectiva das irmãs depoentes no processo e a do papado. No documento que inicia o processo de canonização de Clara, a bula Gloriosus Deus,5 vemos Inocêncio IV enfatizar o modelo das núpcias com Cristo. Outros princípios da vida religiosa aparecem ali como secundários ou complementares. A pobreza no discurso oficial da santidade seria o dote de Clara para o matrimônio, e sua virgindade seria seu voto. Chamando atenção para essa construção discursiva, La Grasta (1993, p. 308) argumenta que na carta há uma hierarquização dos dois elementos, sendo a pobreza premissa para as núpcias com Cristo e a virgindade aquilo que define a vida religiosa consagrada.

Ao contrário do que ocorre no discurso papal, no processo de canonização a pobreza é sempre enfatizada pelas mulheres da comunidade de Clara, inclusive chamadas de “damas pobres”. A perspectiva destas pode ser bem exemplificada no relato de sua irmã espiritual e carnal, Beatriz, onde lemos:

Quando se perguntou em que consistia a santidade de dona Clara, respondeu que era na virgindade, na humildade, na paciência e benignidade, na oportuna correção, nas suaves admoestações às Irmãs, na assiduidade da oração e contemplação, na abstinência e jejuns, na aspereza da cama e das roupas, no desprezo de si mesma, no fervor do amor de Deus, no desejo do martírio. E máxime no amor pelo Privilégio da Pobreza (Pedroso, 2004, p. 103).

Outro aspecto a destacar, que, aliás, é um dos temas mais recorrentes na historiografia sobre santidade feminina, são as comparações feitas com a figura de Maria. Segundo Mooney (1999, p. 56), diversos textos escritos sobre Clara irão dar grande realce às comparações entre Clara e Maria, em uma cadeia de comportamentos exemplares segundo a qual a Virgem seria o modelo de Clara e esta, em consequência, se tornaria um modelo para as mulheres cristãs. Ainda segundo a autora, esta comparação indicaria uma estratégia de poder, pela qual se afastou a ideia de que Clara teria, na verdade, buscado seguir o modelo de Francisco e, em última instância, imitado Cristo, como veremos a seguir.

No processo de Clara vemos alguns pontos de comparação com Maria. No caso de Clara, ao contrário do que veremos mais à frente no processo contra os devotos de Guglielma, é, contudo, enfatizada uma indiscutível superioridade de Maria, abordagem que será contraposta mais adiante, na análise do processo sobre Guglielma. Neste sentido, segundo uma das Irmãs, Clara “tinha sido cheia de graças e de virtudes e de santas obras, e achava que tudo que de santidade pode ser dito de alguma santa mulher depois da Virgem Maria, em verdade poderia ser dito dela” (Pedroso, 1994, p. 87). Outra testemunha reitera o relato, falando sobre “sua humildade, a benignidade, a paciência e as outras virtudes que ela possuía em abundância, tanto que cria firmemente que, da Virgem Maria para cá, nenhuma mulher tinha maior mérito que a senhora” (Pedroso, 1994, p. 92).

Nesse ponto é possível identificar que havia por parte das damas pobres uma identificação de Maria como ideal de santidade ao qual Clara se aproximava acima de todas as mulheres. É uma passagem em que podemos ver como era a compreensão do feminino naquele contexto. A comparação é feita com Maria e com outras mulheres. Com isso é possível pensar que, para além da proposta eclesiástica de conformação de um modelo de santidade propriamente feminino, que tinha em Maria um ideal a ser almejado, apesar de inacessível, as mulheres em vida religiosa, ao falar da santidade de Clara, usavam como objeto de comparação Maria e não o próprio Cristo ou outro santo, como Francisco de Assis, que era notoriamente seu mentor espiritual. Ou seja, havia, para as testemunhas que depuseram no processo, uma identificação de Clara com Maria, porque, em suas características femininas, ela se aproximava do exemplo da mulher considerada como a mais perfeita da cristandade.

Diversos elementos do comportamento cotidiano de Clara no convento, no tratamento de si mesma e de suas irmãs, foram elencados para atribuir-lhe este status de perfeição. Temática recorrente em outras fontes hagiográficas, no processo de Clara, no processo vemos menções à simplicidade de seus hábitos, dentre os quais a vestimenta. Segundo Diane Huges (1992, p. 188), a atenção dada ao ato de vestir-se tem, por volta do século XIII, um incremento devido ao surgimento do que passaríamos a chamar moda, a partir de uma maior circulação dos artigos de luxo. Neste período, a questão das vestimentas passa a ser levada em consideração de forma mais enfática nos textos eclesiásticos, mostrando mulheres que abdicavam de roupas de qualidade e beleza para adotar um hábito simples ao adotarem a vida religiosa.

Nos registros sobre Clara, que era de família nobre, a renúncia ao luxo e ao conforto das vestimentas de seu meio social é claramente um topos:

[...] era de tanta aspereza no seu corpo que se contentava com uma só túnica de pano rude e um manto [...] mandou fazer uma certa veste de couro de porco e a usava com os pelos e pelugens cortadas junto da carne; e a levava escondida embaixo da túnica de pano rude [... e] mandou fazer mais uma roupa de pelos de cauda de cavalo e, fazendo com elas umas cordinhas, apertava-as junto ao seu corpo. Afligia desse modo a sua carne virginal com esses cilícios [...] era muito misericordiosa com as Irmãs que não podiam suportar tal aspereza e de boa vontade lhes dava consolação (Pedroso, 1994, p. 71).

Esse último trecho pode significar que as suas Irmãs eram obrigadas a fazer o mesmo, mas recebiam consolo por sofrerem com isso. Ou que não eram obrigadas, uma vez que Clara era, em santidade, tão superior a todas que podia suportar o que as outras não podiam. De qualquer forma, Clara dava um outro significado ao uso de suas roupas, ultrapassando a ênfase na entrega à pobreza para acrescentar um elemento de mortificação que aparece em relatos hagiográficos com uma forma pela qual mulheres religiosas usavam de sua corporeidade para se aproximar do divino (Silva, 2002, p. 138).

A austeridade dos hábitos aparece também relacionada à alimentação, como, por exemplo, quando uma das Irmãs diz que ela “era tão estrita na sobriedade dos alimentos que parecia alimentada pelos anjos. Castigava tanto seu corpo que, em três dias da semana, segunda, quarta e sexta, não comia coisa alguma” (Pedroso, 1994, p. 83).

O uso que Clara fazia dos hábitos austeros como emulação do sofrimento de Cristo era parte de sua prática espiritual que acompanhava, como exemplo de conduta, aquilo que era ensinado às damas pobres que formavam sua comunidade. Uma das Irmãs de Clara relata que “a primeira coisa que a senhora lhe ensinou foi a amar a Deus sobre todas as coisas; a segunda, que devia confessar integralmente e com frequência [sic] os seus pecados; e terceira, que devia recordar sempre a paixão do Senhor” (Pedroso, 1994, p. 100). Nesse ponto, é possível argumentar que os ensinamentos de Clara são ensinamentos da Igreja Romana. Especialmente no que diz respeito à exortação à confissão assídua.

Apesar de não ter a mesma ênfase que nos documentos papais, a virgindade também aparece elencada pelas irmãs como atributo de santidade de Clara. Lemos no processo que “foi tão grande a santidade de vida e honestidade dos costumes da bem-aventurada madre [... e que] foi virgem desde a infância, [e] assim virgem permaneceu escolhida pelo Senhor” (Pedroso, 1994, p. 76). Ou seja, um dos pontos da identificação de sua santidade está no fato de a religiosa ter se mantido virgem por toda a vida.

O último atributo de santidade identificado é a questão da humildade. Uma das devotas de Clara afirma que “foi tanta a humildade da bem-aventurada madre que desprezava completamente a si mesma” (Pedroso, 1994, p. 77). Outra ainda acrescenta que ela, por sua tamanha humildade, “lavava com as suas mãos as cadeiras sanitárias das Irmãs doentes, nas quais algumas vezes havia vermes” (Pedroso, 1994, p. 89).

A questão da humildade se relaciona, por sua vez, a mais um ponto de convergência entre os atributos de santidade das duas mulheres: a relação criada entre a questão da ascendência nobre e aquela do abandono da riqueza como traço central da espiritualidade desenvolvida por ambas as santas. Uma testemunha do processo sobre Clara diz que ela era “nobre por geração e parentela, e rica nas coisas do mundo, a qual amou tanto a pobreza que vendeu toda a sua herança e a distribuiu aos pobres” (Pedroso, 1994, p. 82).

Repetem-se os exemplos de nobres que fugiram da possibilidade de grandes e ricos casamentos para se dedicarem à vida religiosa. Além de sua irmã carnal Inês, que seguiu seus passos e formou com ela o primeiro grupo de damianitas, há também um exemplo bastante próximo de Clara, que é o de Inês de Praga, com a qual ela se comunicava por meio de cartas.

Inês, filha do rei Otakar I da Boêmia, fora prometida em noivado a diversos príncipes, inclusive ao futuro imperador Henrique VII, mas optou por abraçar a vida religiosa, após entrar em contato com frades menores que visitaram sua terra (Pedroso, 1994, p. 44). O exemplo de Inês de Praga é bastante significativo da inserção e expansão dos ideais de Clara, uma vez que, para a primeira, havia ainda o exemplo de sua prima, santa Isabel da Hungria, que havia alcançado fama de santidade mesmo tendo sido casada. Para Inês, no entanto, o caminho é aquele apontado por Clara em suas cartas. Clara escreve à Inês elogiando-a porque ela havia preferido “a santíssima pobreza e as privações corporais, com toda a alma e com todo o afeto do coração, tomando um esposo da mais nobre estirpe, o Senhor Jesus Cristo, que guardará vossa virgindade sempre imaculada e intata” (Pedroso, 1994, p. 46).

Clara também fizera a mesma opção, como atesta uma das Irmãs de São Damião, e sua própria irmã carnal, Inês:

[...] a virgem Clara concordou com o que ele [Francisco] dizia, renunciou ao mundo e a todas as coisas terrenas e foi servir a Deus o mais depressa que pôde. Pois vendeu toda a sua herança e parte da herança da testemunha e deu-a aos pobres. E depois São Francisco cortou seu cabelo diante do altar, na igreja da Virgem Maria, chamada Porciúncula, e a levou para a Igreja de São Paulo das Abadessas. Seus parentes quiseram levá-la embora, mas dona Clara agarrou as toalhas do altar e descobriu a cabeça, mostrando que a tinha raspado, e não consentiu de modo algum, nem se deixou arrancar dali, nem levar de volta com eles (Pedroso, 1994, p. 102-103).

Segundo Grundmann (2005, p. 84), a opção por se negar a um, provavelmente, vantajoso casamento era uma marca constitutiva da santidade feminina no século XIII e que tal atitude provocava, geralmente, uma reação negativa por parte dos familiares das mulheres que seguiam este caminho, como vemos no caso de Clara. Este autor ainda chama atenção para o fato de que a renúncia ao casamento e, consequentemente, às riquezas e status social dele advindos, se dava por livre e espontânea vontade dessas mulheres, o que enfatiza o argumento de que elas podiam, através da vida religiosa, encontrar um caminho que as permitisse viver sua espiritualidade independente daquilo que sua família almejava para elas em termos de seu papel em alianças familiares constituídas pelos laços do casamento.

O que podemos observar, então, é que Clara segue alguns dos principais topoi para a santidade do período em que se constituíram as bases para a formação de seu culto. Dentre tais topoi, temos, principalmente, a Imitação de Maria em contraposição à Imitação de Cristo, que será mais aprofundada no tópico seguinte; a postura de humildade relacionada tanto à obediência quanto à renúncia aos bens materiais individuais e coletivos; a questão da ascese relacionada às privações e mortificações corporais, incluindo aí o jejum e a rudeza das vestimentas, bem como o tema da virgindade que, por mais que não apareça no texto do processo com tanta ênfase quanto aquele da pobreza, por exemplo, ocupa um papel de destaque na espiritualidade clariana, como podemos observar em outros documentos como as cartas a Inês de Praga.

2.2. Clara e o ideal de Imitação de Cristo

Para as damas pobres, a santidade de Clara consistia, sobretudo, em sua humildade, seu comportamento exemplar no convento e em seu amor pela pobreza, sendo esta a característica mais ressaltada ao longo dos depoimentos. Chamamos atenção aqui, sobretudo, para o par virgindade/pobreza no que diz respeito à particularidade do texto do processo, sendo muito mais recorrentes as menções à segunda que à primeira. Mais adiante essa questão será retomada, ao analisarmos como há uma diferenciação entre a percepção das devotas acerca de qual seria o modelo seguido por Clara. Se o de Cristo e, paralelamente, Francisco, ou se o de Maria como figura de santidade feminina por excelência.

A historiografia aponta que o conceito de Imitatio Christi se constitui como uma forma de identificação com Cristo que implica participar de seu sofrimento (Visalli, 2013, p. 95). Vemos em Clara uma ênfase em um dos principais traços da espiritualidade franciscana, a saber, a centralidade na Paixão de Cristo e da presença da Encarnação na eucaristia, as quais imbuem esta espiritualidade de uma corporeidade física. Nessa chave de elaboração teológica, a imitação como forma de vida religiosa acontece por meio de uma reprodução da imagem do Cristo pobre e sofredor (Rusconi, 2009, p. 10).

Há uma originalidade na proposta de Francisco segundo a qual a vida religiosa torna-se menos a concepção de uma prática baseada na contemplação do mistério de Deus e mais uma busca por viver em total conformidade com o seu exemplo (Vauchez, 1994, p. 254). Dessa forma, pode-se alegar que, por mais que a noção de imitação não fosse nova, a espiritualidade franciscana trazia a ela algo de novo e isso se dá pela centralidade do ideal da pobreza coletiva. Segundo De Boni,

Até então a cristandade conhecera, por exemplo, a pobreza individual voluntária dos monges, mas jamais se apregoara que a vida cristã deveria caracterizar-se também pela pobreza coletiva. Da mesma forma, jamais se pregara que a forma ideal de vida para todos os cristãos era a Imitação de Cristo e dos apóstolos, pobres pregadores do reino dos céus (De Boni, 1998, p. 24).

Assim como Francisco, Clara propunha um aprofundamento da chamada vita apostolica, que previa um modo de viver de acordo com aquele da igreja primitiva, em pobreza comunal e pregando o Evangelho. Imitar Cristo, em sua acepção mais direta, significava imitar a vida que ele e seus seguidores levavam. Contudo, a pobreza e a pregação apresentavam alguns problemas intimamente ligados ao que se esperava da vida religiosa feminina e que podem ser melhor abordados quando temos em mente o exemplo de Francisco de Assis, considerado como expoente máximo de tal prática religiosa (Vauchez, 1994, p. 254).

A Imitatio Christi praticada por Clara é vista por alguns autores como uma forma indireta de imitação, tendo Francisco como intermediário. Se Francisco era o alter Christus, Clara era a alter Franciscus (Hardick, 1961, p. 26). A vida de Clara aparenta recorrentemente emular aquela de Francisco, desde a sua entrada na vida religiosa, passando primeiramente nas casas religiosas de São Paulo das Abadessas e Santo Ângelo de Panço (Grundmann, 2005, p. 110), até sua posterior ligação com o convento de São Damião. Argumenta-se que, enquanto Francisco recebeu as chagas, Clara sofreu de uma doença muito debilitante durante longos anos de sua vida; ambas as condições foram entendidas como sinais de santidade e de união com o sofrimento do Cristo (Mooney, 1999, p. 55).

No processo, o frágil estado de saúde de Clara sempre é citado pelas damianitas como comprovação de suas virtudes, pois a doença nunca a impediu de ter um comportamento coerente com os ideais de sua forma de vida. Segundo Irmã Pacífica, por exemplo:

[...] depois que ela [Clara] ficou doente de não poder levantar da cama, fazia com que a erguessem para ficar sentada e sustentada com alguns panos por trás das costas e fiava, tanto que com o seu trabalho fez confeccionar corporais e os enviou para quase todas as igrejas da planície e dos montes de Assis (Pedroso, 1994, p. 66).6

No entanto, a prática que cada um dos santos e seus grupos de religiosos desenvolveram se distinguia em alguns pontos essenciais, como em relação à pregação itinerante.

O ato de levar as palavras do Evangelho aos fiéis era parte primordial do objetivo de seguir os passos de Cristo e uma das práticas centrais dos religiosos em torno de Francisco. No que se refere à Clara e às suas irmãs, a pregação itinerante não constitui parte de sua religiosidade. Argumenta-se que as normativas monásticas impostas a mulheres do período proibiam a itinerância, pois os eclesiásticos envolvidos em tal normatização julgavam a vida em clausura, longe dos perigos do mundo, mais adequada à vida religiosa feminina (Ranft, 1996, p. 132).

O motivo da pregação itinerante sequer é abordado nos depoimentos das damianitas, mas a vida reclusa também não está elencada como uma virtude associada à santidade de Clara. No processo, as irmãs de Clara dão pouca ou nenhuma atenção à vida claustral. Na bula de canonização, por outro lado, os registros exaltam o fato de que Clara “ficava [...] fechada no segredo do claustro”, “se escondia” e “se calava” (Pedroso, 1994, p. 272).

Além disso, a questão da pobreza para Clara era crucial e é identificada como uma das principais facetas da sua prática da Imititatio Christi. Não sem enfrentar alguma resistência, Clara conseguiu do papado a aprovação para viver sob voto de absoluta pobreza. Sua intenção de seguir os ideais franciscanos foi evitada pela Cúria, pois esta não considerava que essa forma de vida fosse adequada para mulheres. No caso de Francisco, a pobreza estava intrinsecamente ligada a outros traços fundamentais de sua vivência, como a já mencionada pregação itinerante e a mendicância. Neste ponto, mais especificamente, residia a resistência do papado, já que tal modo de vida, mesmo tendo sido aceito para homens, não deveria ser seguido na vida religiosa feminina.

É possível compreender o quanto a questão da pobreza de inspiração franciscana poderia ser problemática aos olhos do papado, quando se observa que nem mesmo a uma das principais seguidoras de Clara, Inês de Praga, foi concedido tal Privilégio. Ao solicitá-lo, a resposta de Roma veio em forma de uma grande quantidade de doações (Newman, 2010, p. 565). O motivo para isso era, como já mencionado acima, a necessidade de enclausuramento das mulheres. Não seria possível viver em pobreza absoluta, com total ausência de doações, sem que a prática da mendicância garantisse o mínimo sustento.

Outro ponto interessante das discussões acerca da prática de Imitatio Christi está naquilo que alguns historiadores observaram como uma proliferação de milagres envolvendo a eucaristia. No processo sobre Clara, uma das damianitas dá exemplo de um desses milagres, contando que

[...] um dia as Irmãs só tinham meio pão, pois a outra metade tinha sido mandada aos frades que estavam ali fora. A senhora mandou à testemunha que cortasse cinquenta fatias e as levasse para as Irmãs, que tinham ido para a mesa. Então a testemunha disse a dona Clara: “Para tirar cinquenta disto seria necessário aquele milagre do Senhor, dos cinco pães e dois peixes”. Mas a senhora respondeu: “Vá fazer o que lhe disse”. E o senhor multiplicou aquele pão de modo que rendeu cinquenta fatias boas e grandes, como Santa Clara tinha mandado (Pedroso, 1994, p. 66).

Essa passagem além de atestar um milagre de Clara, é um dos exemplos de como o tema da alimentação estava presente na espiritualidade desenvolvida por ela. Em sua vivência não vemos apenas exemplos de privação do alimento como viés ascético, mas podemos observar uma prática que relaciona o asceticismo pela alimentação com a devoção eucarística. Jejuar era importante para ela, mas o alimento assumia um valor que ultrapassava a sua negação.

Em outro texto da Legenda de Santa Clara Virgem, atribuída a Tomás de Celano em 1255, ano de sua canonização e, portanto, entendida como documento dependente do processo, vemos que:

E para que admires, leitor, o que não podes imitar, não tomava nada de alimento durante essas quaresmas em três dias por semana, nas segundas, quartas e sextas-feiras. Sucediam-se assim os dias de acerba mortificação, de modo que uma véspera de privação total precedia um festim de pão e água (Pedroso, 1994, p. 129).

Caroline Bynum (1987, p. 99) observa que existe uma ligação essencial entre a comida e a eucaristia, bem como entre o jejum e o ato de “alimentar-se de revelação”. O pão teria, desta forma, um papel central nas alegorias envolvidas nos escritos sobre Clara e de Clara.

Milagres como este, em que Clara realiza a multiplicação dos pães, e que, segundo a autora citada, estão relacionados à devoção eucarística, podem ser interpretados como uma forma de apoiar a doutrina da transubstanciação, a qual tinha como principal objetivo oferecer uma alternativa significativamente oposta àquela do dualismo cátaro (Bynum, 1991, p. 143).

A aproximação com uma visão mais material da divindade fazia com que a matéria em si fosse valorizada, abrindo um novo espaço para crenças e práticas religiosas que foram aos poucos se inserindo na noção de Imitatio Christi: não apenas contemplar Cristo em seu sofrimento, mas estar em contato com ele através da eucaristia.

Dessa forma, observamos que a Imitação de Cristo em Clara está intimamente relacionada às noções da época sobre este fenômeno. Ela seguia, de forma institucional, aquilo que se entendia como a perfeição evangélica com inspiração nos escritos sobre os primórdios da igreja. Clara sofria fisicamente, realizava milagres, tinha um comportamento ascético idealizado, era responsável pela direção do grupo de irmãs em vida conventual e não só vivia, mas ensinava às damianitas os preceitos básicos da vida evangélica.

Além dos elementos apontados no processo de canonização, podemos citar também o posicionamento de Clara em seus próprios escritos, como seu Testamento e as cartas endereçadas a Inês de Praga. Nestes documentos podemos perceber que ela é bastante explicita acerca da importância de desenvolver uma espiritualidade pautada na Imitação de Cristo.

No Senhor Jesus Cristo, aconselho e admoesto a todas as minhas Irmãs, presentes e futuras, que sempre se empenhem em seguir o caminho da santa simplicidade, da humildade, da pobreza e também uma vida honesta e santa, como aprendemos de Cristo e de nosso bem-aventurado pai Francisco desde o início de nossa conversão (Pedroso, 1994, p. 91).

No trecho acima, retirado de seu Testamento, documento que seria uma espécie de complemento de sua regra aprovada, vemos que Clara tinha total certeza de sua missão, e de suas irmãs, de tomar Cristo como exemplo máximo e Francisco como uma extensão daquilo que Jesus representava.

Também na segunda carta a Inês de Praga, vemos Clara elogiando sua Irmã pela forma como alcançou este objetivo.

Agradeço ao Doador da graça, do qual cremos que procedem toda dádiva boa e todo dom perfeito, pois adornou-a com tantos títulos de virtude e a fez brilhar em sinais de tanta perfeição, para que, feita imitadora atenta do Pai perfeito, mereça ser tão perfeita que seus olhos não vejam em você nada de imperfeito (Pedroso, 1994, p. 49).

Nessa passagem, vemos que, para Clara, era possível para uma mulher ser plenamente uma imitadora de Cristo. Nem mesmo podemos perceber qualquer traço de que ela veria a imitação em si como algo excepcional e não atingível por outras. Ela admoesta as irmãs a serem imitadoras e reconhece em Inês o sucesso em fazê-lo. Dessa forma, não se tratava aqui de um ideal projetado como um horizonte distante, mas de um caminho a ser seguido a partir de práticas cotidianas que permitiriam a por ela tão prezada perfeição.

Levando em consideração os três eixos aqui abordados, ou seja, a vivência comunitária das irmãs, os atributos de santidade e a Imitação de Cristo vinculados à Clara, pudemos ter uma visão de conjunto dos elementos que compunham seu culto no imediato pós-morte, não apenas por parte daquelas que conviveram com ela, mas pela hierarquia eclesiástica.

Apesar de podermos desconstruir a ideia de que Clara era uma figura de santidade feminina padrão para a época, a partir das particularidades apresentadas pelas depoentes no processo e seus próprios escritos, podemos, por outro lado, ter mais clareza sobre quais eram as características desse padrão intentado pela Santa Sé para o comportamento religioso feminino.

Mesmo existindo pontos de divergência entre Clara e a hierarquia eclesiástica, sobretudo no que dizia respeito às possibilidades de experiência da pobreza em uma comunidade religiosa feminina, pudemos observar que sua santidade era passível de aceitação e mesmo estímulo por parte do papado, uma vez que respondia a demandas espirituais próprias de sua época: uma forma de vida evangélica mais literal, que estivesse em consonância com os ideais da Imitação de Cristo, e, sobretudo, aberta à presença feminina.

No anseio da consolidação de um exercício de poder amplo, pautado na garantia de uma ortodoxia de práticas e crenças, uma das principais preocupações do papado, como já exposto, era fazer com que a demanda feminina por inserção na vida religiosa fosse atendida dentro dos limites institucionais. Esse movimento seria, ainda, mais uma das estratégias no sentido de combater o fortalecimento de grupos que a hierarquia eclesiástica identificava como propagadores de desvios doutrinários.

Tendo este quadro em vista, podemos perceber que Clara personificou os dilemas de sua época, tendo muito de seus ensinamentos e ideais obliterados pela atuação papal, da qual não seria possível desviar sem correr o risco de fracassar em sua busca por uma espiritualidade pautada na pobreza evangélica, mas também sendo capaz de criar uma forma de vida original. Isto, em última instância, nos leva a entender que não era, nem naquele período, nem em nenhum outro, natural ter uma vivência religiosa condicionada por sua condição como mulher.

A análise dos registros sobre Clara de Assis permite verificar as dinâmicas relações de poder envolvidas nas estratégias institucionais de enquadramento da religiosidade feminina em confronto com as lideranças exercidas por essas mulheres em suas comunidades e as resistências apresentadas por suas propostas.

3. A CARACTERIZAÇÃO DE GUGLIELMA NO PROCESSO CONTRA SEUS DEVOTOS

Ao contrário do que acontece com Clara, no que concerne às origens de Guglielma. Segundo os registros do processo, ela chegou a Milão no ano de 1260, estabeleceu-se em uma propriedade nos arredores da abadia de Chiaravalle e começou a conquistar fama de santidade ainda em vida, reunindo um grupo bastante heterogêneo de seguidores, dentre os quais irmãs umiliate e monges e leigos conversos da abadia cisterciense. Após sua morte, em 1281 ou 1282, o grupo de devotos, à exceção dos monges, acabou perseguido por heresia, tendo por principal alegação a crença de que Guglielma seria a encarnação do Espírito Santo.

O manuscrito A. 227 inf. apresenta as atas do processo inquisitorial de 1300, referentes à fase final da repressão eclesiástica contra as devotas e os devotos de Guglielma. O documento foi descoberto no século XVII por um monge cartuxo na Lombardia e, posteriormente, transferido para a Basílica de San Lorenzo, em Milão, onde foi estudado por Puricelli. Por fim, foi doado a Biblioteca Ambrosina, na mesma cidade, onde permanece até hoje (Benedetti, 1999, p. 14). No manuscrito, estão contidos quatro livros de protocolo do notário milanês Beltramo Salvagno, com os registros do período de julho de 1300 e fevereiro de 1302. A documentação produzida pelo notário Salvagno não apresenta a totalidade dos atos inquisitoriais do caso, pois, na documentação, há referência aos registros de outro notário, Maifredo Cera, os quais não foram transmitidos ou permanecem ainda por ser descobertos.

3.1. O estatuto dos devotos de Guglielma, depoentes no processo

O grupo reunido em torno ao culto de Guglielma era composto, como já dito acima, pelas irmãs umiliate da casa de Biassono, por irmãos leigos ligados à abadia de Chiaravelle e pelos monges desta mesma instituição. Quanto a estes últimos, não possuímos mais que informações indiretas, uma vez que não figuram como depoentes no processo inquisitorial. Neste sentido, nos concentraremos aqui em analisar os testemunhos dos dois outros grupos mencionados.

3.1.1. Os umiliati

Os umiliati formavam um movimento religioso que começa a se difundir no norte da Itália em meados do século XII, tornando-se uma ordem em 1201 e permanecendo ativo até o século XIV. Na Itália, mas em particular nessa região mais setentrional, pode-se observar, desde o final do século XII, o crescimento de grupos, como os umiliati, inicialmente formado por homens e mulheres leigos desejosos de perseguir a perfeição cristã, vivendo em comunidade, mas sem abdicar da vida em família e de suas atividades laborativas (Alberzoni, 1997, p. XI).

Antes de terem sido reconhecidos e institucionalizados pelo papado, a trajetória dos umiliati foi marcada por polêmicas. Ainda no século XII, foram excomungados por Lúcio III, uma vez que a pregação não oficial e não autorizada tinha um caráter contestador da exclusividade de monges e clérigos como mediadores entre homens e Deus. Depois disso, já no século XIII, de acordo com o projeto de alargamento da unidade cristã idealizado por Inocêncio III, foram reabsorvidos na instituição eclesiástica (Andrews, 1999, pp. 6-17). Após sua aprovação, o grupo se desenvolveu em três ordens de homens e mulheres. A primeira, ordem canônica, era composta de clérigos e cônegas; a segunda, monástica, e a terceira, que incluía membros homens e mulheres leigos que viviam fora das casas comunais, em suas propriedades com seus familiares.

A permissão para pregação havia sido concedida por Inocêncio III aos membros das duas primeiras ordens dos umiliati, ou seja, aos cônegos tonsurados e aos leigos que viviam em comunidade. Contudo, a pregação desenvolvida por Maifreda, relacionada aos elementos heréticos das crenças e práticas compartilhadas por alguns dos devotos de Guglielma, tornou-se um problema a parte.

Este ponto permite alguma reflexão acerca do real controle que o papado possuía sobre estas novas comunidades. Mesmo sendo um ramo institucionalizado dentro da ordem dos umiliati, o grupo de mulheres que estavam reunidas em Biassono parece, pelo registro dos atos inquisitoriais, gozar de bastante liberdade. Maifreda pregava regularmente tanto a irmãs quanto a familiares das mulheres que compunham a comunidade. Isso parece apontar para uma certa autonomia, que assemelha este grupo mais a formas de vida como das beguinas, que a outros grupos regulares institucionalizados pelo papado neste contexto, como as ordens mendicantes.

A Península Itálica teria visto abundar grupos de mulheres nesse tipo de comunidade religiosa por sua própria configuração política, com o governo das comunas tendo grande autonomia frente a diversos assuntos e criando figuras políticas de grande abrangência em seu exercício de poder. Tal situação permitia a certas mulheres se reunirem com alguma liberdade frente às estruturas eclesiásticas, papais e locais, desde que estivessem sob a proteção de uma família importante na região (Barone, 1993, p. 35).

A falta de um controle direto e a diversidade de formas de religiosidade que permitiam uma liberdade de ação, parece ser uma chave importante para chegar à questão da percepção da heresia por parte da instituição eclesiástica. Com relação ao papel das mulheres na ordem, as umiliate eram líderes de comunidades, mas há pouca evidência de que elas participassem da pregação, apesar de não existir uma injunção específica contra esta prática (Brasher, 2003, pp. 4-5).

Além disso, como estamos tratando de um período em que mudanças ocorriam no sentido de buscar novas formas de disciplinarização da atuação religiosa das mulheres, vale ressaltar que até o século XII as atividades desempenhadas por monjas não diferiam tanto daquelas desenvolvidas por monges e nisso estava prevista a pregação, até então não proibida para mulheres. Temos, assim, o caso mais notável da pregação pública de Hildegarda de Bingen, que teria viajado em pregação religiosa até mesmo quando já possuía uma idade avançada (Leclerq, 1980, p. 67).

No caso de Maifreda, tal como esta aparece nos depoimentos do processo, não só é afirmado que ela pregava, mas também que o conteúdo desta pregação, ao contrário do que se registrou a respeito dos umiliati até então, incluía proposições doutrinárias e elaborações teológicas que divergiam de maneira mais radical daquela aceita pela ortodoxia vigente.

3.1.2. Os irmãos leigos ligados à abadia de Chiaravelle

Já os irmãos leigos ou conversos representavam outra tendência da religiosidade da época, que consistia em um ingresso parcial na vida regular. No bojo das transformações que tiveram seu auge no século XIII, uma das formas mais comuns de leigos se dedicarem à vida religiosa, sem necessariamente entrarem para uma comunidade, ou seja, viver sobre uma regra, era o chamado pacto de fraternitas.

Tal pacto poderia ser feito individualmente, por um casal, ou até mesmo por famílias inteiras, que se colocavam voluntariamente sob a tutela de uma comunidade monástica ou canônica, mediante a doação de suas propriedades e seus bens materiais, dos quais usufruíam durante a vida e passariam para as mãos dos religiosos após a sua morte. Aqueles que não possuíssem bens doariam sua força de trabalho e, assim, viveriam e se alimentariam no mosteiro, seguindo algumas obrigações litúrgicas reduzidas (Vauchez, 1995, p. 139).

No texto inquisitorial figuram membros de famílias que vivam desta forma. No entanto, não se tem muita clareza acerca da condição social de todos esses leigos, pois nada é dito a respeito de atividades laborativas por eles desenvolvidas, o que nos leva a crer que estes seriam de um status elevado, vivendo nas cercanias do mosteiro a partir da doação de suas propriedades.

Segundo o relato, a própria Guglielma teria vivido desta forma, morando sozinha em uma casa doada à Chiaravalle e levando “una vita comune in riferimento al cibo e al bere e alle vesti” (Benedetti, 1999, p. 143).7 Também o fato de Guglielma ter sido sepultada no cemitério do mosteiro pode ter relação com esta forma de vida, mas essa questão é tratada de maneira divergente pela historiografia. Alguns autores afirmam que esse era um privilégio concedido aos irmãos leigos. Para outros, o privilégio se limitava à inclusão de seus nomes no necrológio da comunidade, enquanto o sepultamento seria um dos indícios mais claros da aceitação do culto de Guglielma pelos cistercienses de Milão (Newman, 1995, p. 185).

O movimento religioso em torno a Guglielma, assim como visto na análise do grupo de Clara, apresentava os ideais que marcavam a espiritualidade do período, ou seja, a ideia de que o Evangelho era a única regra a ser seguida. Desde o século XII, movimentos religiosos se formaram no Ocidente cristão tendo como base uma nova espiritualidade, a vita vera apostolica.

Esse movimento pode ser entendido como a consequência de uma crise da organização eclesiástica ou mesmo como uma revitalização desta, no momento que passa a incluir não apenas novos grupos que acabaram sendo considerados heréticos, mas também ordens religiosas, como a de Císter, que provocaram uma revitalização dos ideais beneditinos (Bolton, 1985, pp. 22-27).

O grupo de devotos de Guglielma, no entanto, apresentava características que faziam com que movimentos de pobreza evangélica fossem considerados como não ortodoxos: crítica à opulência e à corrupção da Igreja vigente, implícita na proposta de uma Igreja renovada e falta de um vínculo institucional homogêneo, a partir do momento em que conviviam membros como monges cistercienses, leigos conversos e irmãs umiliate. Essa característica demonstraria a não aceitação do enquadramento proposto (ou imposto) pelo papado desde o IV Concílio de Latrão, em uma ideia de “recusa das instituições eclesiásticas que haviam se tornado opressoras” (Vauchez, 1995, p. 126) ou seria o caso de um registro da multiplicidade de formas de experiência religiosa que subsistiam, apesar de todos os esforços institucionais?

3.2. Os atributos de santidade de Guglielma

Guglielma e seu grupo de devotos foram acusados de heresia, sendo alguns entregues ao braço secular e os restos mortais daquela que cultuavam queimados, mas em seu processo podemos ver tanto os elementos que caracterizaram o desvio doutrinário quanto aquilo que concernia apenas ao culto público, o qual, em grande medida, não foi condenado. Ao analisar os elementos que caracterizam a figura de Guglielma apresentados pelo processo damos uma ênfase aos atributos de santidade de Guglielma justamente para demonstrar que a percepção da heresia é eclesiástica, ao contrário daquela da santidade, que pode ser tanto da autoridade eclesiástica quanto da comunidade de devotos. Aqui será também interessante tratar da questão da liderança feminina religiosa representada tanto por Guglielma quanto por Maifreda, tendo em vista o caráter inusitado apresentado pela proposta religiosa do grupo ao constituir uma hierarquia que colocava mulheres em posições hierárquicas tradicionalmente ocupadas por homens.

Os relatos presentes no processo de inquisição não deixam dúvida de que Guglielma recebeu culto e era identificada por seus devotos como “una persona di vita buona e di comportamenti onesti e che Guglielma aveva fatto certi miracoli” (Benedetti, 1999, pp. 184-185). Contudo, nos registros do processo sobre ela será necessário um exame mais minucioso para identificar os atributos de santidade que seus devotos deixam entrever em algumas de suas respostas aos inquisidores, uma vez que o foco das perguntas não estava neste assunto. O interesse dos inquisidores se concentra naqueles elementos de crenças e práticas que levaram à acusação por heresia.

Buscamos estudar as significações dentro dos discursos (Silva, 2007, p. 3), pois mesmo que um discurso se torne hegemônico dentro de uma sociedade e se materialize em instituições e seus instrumentos, tal como os processos aqui estudados, outros discursos se fazem presentes, mesmo quando ignorados ou inferiorizados. Isso permite ver a santidade de Guglielma para além do discurso hegemônico que a enquadra na heresia. Neste sentido, podemos observar que os atributos de santidade conferidos pelos devotos a Guglielma não surgem como respostas diretas às perguntas dos inquisidores. Isso aponta para uma relação de forças entre estes dois sujeitos, devoto e inquisidor, e entre as duas categorias às quais Guglielma estava por ser vinculada, santa e herege.

Assim, sempre que uma virtude sua ou um milagre seu é citado por um dos depoentes, não há indício de que os inquisidores estariam interessados em registrar explicações mais pormenorizadas de tais informações, nem mesmo para contrapor àquelas que apontavam no sentido da heresia. Ou seja, uma maior explicação a respeito das virtudes e dos milagres de Guglielma poderia ter tirado o foco de sua imagem como heresiarca, mas os inquisidores não deram atenção a este viés em sua linha de interrogatório.

Em Guglielma vemos, assim como em Clara, a comparação com a figura da Virgem Maria, apresentada por Andrea Saramita já em um momento adiantado do inquérito, em que este afirma acreditar “che Guglielma fosse maggiore nella gloria divina di qualsiasi altro santo, anche della beata Maria, e avrebbe detto ciò se non avesse tenuto la reazione spaventa delle persone” (Benedetti, 1999, pp.172-173). Ao contrário do que observamos anteriormente no caso das depoentes no processo sobre Clara, uma vez que aqui o foco não é a santidade, os registros não apresentam mais menções a possíveis comparações entre Guglielma e Maria. O único registro é justamente aquele desviante, que coloca a primeira em posição superior à segunda.

A questão da austeridade nas vestes aparece também nos relatos sobre Guglielma, quando se diz que esta usava apenas uma roupa simples de cor moreto, ou seja, marrom acinzentado, e que seus devotos fizeram disto uma forma de identificação do grupo.

[...] interrogato dall’inquisitore perché egli e gli altri che erano della congregazione, conventicola e devozione di domina Guglielma, si vestissero di ‘moreto’, risponde che tutti loro si vestivano comunemente di moreto per conformità alle vesti di Guglielma che portava vesti di moreto suro, affinché tutti apparissero della stessa ongregazione e devozione (Benedetti, 1999, pp. 142-145).

Isso indica que há uma identificação entre os devotos e a santa, a partir de algo tão material quanto a vestimenta. Apesar da construção da ideia de que Guglielma seria a encarnação de Espírito Santo, “[...] vero Dio e vero uomo in sesso femminile [...]” (Benedetti, 1999, pp. 98-99), os traços mais materiais de sua vida eram hábitos simples que ela transmitiu a seus devotos. Essa proximidade mais imediata entre santo e devoto é aspecto característico dos cultos de caráter laico.

Já a ideia de “castigar o corpo” com a escassez de alimento, ao contrário do que vimos no caso de Clara, não é explorada nos relatos sobre Guglielma. Ela era apenas simples na alimentação, “[...] conduceva uma vita comune in riferimento al cibo e al bere e alle vesti.” (Benedetti, 1999, pp. 58-59). Esse é mais um ponto em que vemos uma proximidade entre santa e devotos. Guglielma, aparentemente, não era adepta do jejum como forma de contemplação. E seus devotos se reuniam em refeições comunais, que faziam parte do culto à sua santa, o que remonta ao aspecto da vida em confraternidade, também presente nos ideais franciscanos em geral, e nos de Clara em particular.

No processo inquisitorial, em duas passagens são relatados ensinamentos que Guglielma teria passado a seus devotos. Em um deles, é informado que ela dizia “Guardatevi dagli spergiuri e dagli inganni e dalle usure” (Benedetti, 1999, pp. 182-183) e em outro que ela os ensinava que deveriam “[...] stare insieme, amarsi e onorarsi gli uni com gli altri” (Benedetti, 1999, pp. 240-241).

Segundo esses registros, para seus devotos, se não para ela mesma, o mais importante era a união do grupo e a formação de uma família espiritual. Por mais que tenhamos em conta que se tratava de um grupo heterogêneo, com homens e mulheres de diferentes vinculações religiosas, podemos observar que eles mesmos se viam como um grupo coeso, ao menos no que dizia respeito ao culto das virtudes de Guglielma. Tal coesão não iria se repetir nas falas do inquérito quando o tema fosse a acusação por heresia.

No processo sobre os devotos de Guglielma, pensando nas características atribuídas à santidade feminina, chama atenção a ausência de uma ênfase à virgindade, exceto por uma passagem. Em diálogo com um dos devotos, ela teria usado o fato de não ser virgem, de ter tido um filho, como justificativa para negar a divinização que alguns devotos faziam dela. Segundo um deles, em resposta isso, Guglielma “[…] apariva molto adirata e aveva risposto loro che ella era di carne e ossa, e anche aveva portato il figlio nella città di Milano, e che non era ciò che essi credevano [...]” (Benedetti, 1999, pp. 204-305). Ou seja, para ela, a maternidade era prova de que era apenas uma mulher comum. O caráter mundano que Guglielma concedia à sua condição como mulher é também observado em outro depoimento no qual um devoto diz tê-la ouvido dizer que era “[...] una vile femmina e un vile verme” (Benedetti, 1999, pp. 226-227) em resposta à afirmativa deste mesmo devoto de que ela era o Espírito Santo.

Dedicar-se a dar à luz e cuidar dos filhos era tarefa que competia exclusivamente à mulher e isso marca uma das questões que constroem os discursos sobre as diferenças entre os sexos no período. Uma vez que era papel da mulher gerar e criar filhos, deixar de fazê-lo foi visto de diferentes formas pelos autores medievais. Desde a inferiorização de mulheres estéreis,8 passando pela consagração das virgens, até a santificação de mulheres que deixaram seus filhos, como um sacrifício, para servir a Deus (Optz, 1992, pp. 343-354).

Dessa forma, observamos que as características de Guglielma ressaltadas por seus devotos como justificativa para veneração a ela são aquelas comuns às mulheres beatas da época. Ela levava uma vida simples, mas não ascética; realizava pequenos milagres, e transmitia ensinamentos relacionados a uma vivência cristã passível de ser seguida por qualquer pessoa, sem grandes sacrifícios corporais e sem grandes intenções de propor formas de vida que entrassem de algum modo em choque com aquilo que a Igreja institucional previa para seus fiéis.

Esta abordagem chama atenção para o fato de que é possível pensar a santidade de Guglielma de maneira separada da acusação por heresia. Por mais que seja necessário um exame mais aprofundado dos depoimentos para perceber os traços de santidade, eles estão totalmente presentes e não se encontram intrinsecamente dependentes dos elementos que acabaram levando seus devotos a formulações que os colocaram posteriormente na mira do Santo Ofício.

3.3. Guglielma, a Imitação de Cristo e o Espírito Santo

Tendo como base a análise feita no tópico anterior, neste item traremos da discussão sobre a Imitação de Cristo, apontada por diversos autores, como já realçamos, como uma das características mais marcantes da santidade feminina da época. Nosso objetivo será avaliar se Guglielma pode ser associada a este ideal e o quanto isto teria influenciado na acusação de heresia feita contra seus devotos.

No que se refere à Guglielma, o que podemos perceber é uma forma de Imitação de Cristo bastante diferente daquela observada em Clara. De alguma maneira, o exemplo de Guglielma remete a uma maior literalidade dentro do conceito de imitação.

Os devotos de Guglielma, ao responderem às questões postas pelos inquisidores no decorrer do processo inquisitorial, divergem consideravelmente no que tange à sua identificação como santa. Para alguns, ela era o perfeito exemplo da mulher beata, tão comum neste momento, levando uma vida de simplicidade, realizando boas obras e pequenos milagres que envolviam a cura tanto física quanto espiritual daqueles que buscavam seu auxílio. Outros, no entanto, viam nela a encarnação do Espírito Santo, “[...] vero Dio e vero uomo in sesso femminile [...]” (Benedetti, 1999, pp. 98-99).

Para esses devotos, Guglielma era feita da mesma matéria que Cristo e suas vidas se equivaliam. Para dois dos principais devotos do grupo, Andrea Saramita e Maifreda da Pirovano, assim como o anjo Gabriel havia anunciado a encarnação de Cristo para Maria, no nascimento de Guglielma houve um evento paralelo, em que o anjo Rafael anunciou à sua mãe a encarnação do Espírito Santo (Benedetti, 1999, pp. 172-173).

A questão dos estigmas, apesar de demasiadamente obscura, também está presente nas palavras de seus devotos registradas pelos inquisidores. Mais uma vez é Andrea Saramita que dá o relato mais completo sobre o tema. Como resposta à pergunta feita pelo frade dominicano acerca de quais haviam sido as últimas palavras de Guglielma no leito de morte, o devoto responde que ouviu a santa dizer a todos os presentes: “Voi avete creduto di vedere ciò che non vedete per la vostra incredulità” (Benedetti, 1999, pp. 198-169), afirmando que a mulher se referia às cinco chagas de Cristo que, segundo Andrea muitos dos devotos afirmavam ter visto no corpo da santa.

Também a questão da ressurreição está presente em boa parte do processo. Independentemente de ser seguida de uma resposta afirmativa ou não, em todos os interrogatórios os inquisidores fazem a pergunta acerca deste tópico. De acordo com a formulação de alguns devotos, Guglielma deveria retornar dos mortos para garantir a salvação tanto de cristãos, quanto de judeus e sarracenos. Assim, a vida da mulher emula aquela de Cristo ao se situar na narrativa como um momento de transformação, de transição na história da humanidade.

Com relação a essa questão da morte e ressurreição é interessante notar a sequência narrativa que busca se aproximar do texto bíblico também no que concerne à continuidade do culto após a morte de Guglielma. No segundo depoimento de soror Fiordebellina, irmã umiliata, filha de Andrea Saramita, e uma das principais devotas sobre as quais recaíram as acusações de heresia, lemos que:

Interrogata se mai abbia udito o sia stata edotta che soror Maifreda avrebbe dovuto essere come il papa in terra, ossia la vicaria di santa Guglielma, come san Pietro fu vicario di Cristo in terra, risponde che l’aveva sentito più volte e l’aveva creduto, sentendolo da suo padre e da soror Maifreda (Benedetti, 1999, pp. 108-109).

Interrogata se abbia udito e sia stata edotta da Andrea che, come i discepoli di Cristo scrissero i Vangeli, le Epistole e le Profezie, così anche Andrea, cambiando i titoli avrebbe scritto i Vangeli, le Epistole e le Profezie sotto questa forma [...], risponde di averlo ben sentito da Andrea [...] (Benedetti, 1999, pp. 100-101).

Aqui podemos observar que um dos pontos principais da acusação de heresia feita aos guglielmitas estava nas representações femininas da santidade, em particular na crença de que Guglielma era Deus e Maifreda sua vigária na terra, o que acabaria com uma hierarquia entre os sexos, pelo poder de uma figura feminina no topo da elaboração teológica e da organização clerical.

Além disso, a liderança religiosa de Maifreda e o pensamento teológico de Andrea constituem os dois principais pilares dentro da formulação do grupo. Andrea seria o responsável pelo estabelecimento de uma nova interpretação teológica, que incluía a produção de escrituras e uma renovada hierarquia eclesiástica, enquanto Maifreda focava sua interpretação na divindade de Gugleilma e na manutenção da presença desta por meio dos sacramentos (Muraro, 1997, p. 29).

Toda a história relatada pelos devotos no processo inquisitorial pode ser associada à conjuntura do século XIII, particularmente na Península Itálica. A chegada de Guglielma a Milão no ano de 1260 é o primeiro ponto significativo. Neste momento circulavam ideias atribuídas ao abade Joaquim de Fiore que previa a chegada de um novo tempo, que seria marcado pela perfeição cristã com o surgimento de uma Igreja renovada, não mais controlada pelo clero secular, mas pelos grupos que compunham o cenário dos movimentos religiosos de pobreza evangélica.

Nos escritos joaquimitas, vemos o estabelecimento de três eras que ligam as três pessoas da Trindade ao curso da história. Cada umas dessas eras compreenderia um período de 42 gerações de 30 anos, em uma referência a Mateus 1,17. A primeira, a era do Deus Pai, a segunda, a era do Deus Filho e a Terceira, a do Espírito Santo (Falbel, 1996, p. 274).9

Pelos cálculos de Joaquim de Fiore, o fim da segunda era e, consequentemente, o pleno estabelecimento da terceira, a era do Espírito Santo, se daria no ano de 1260 (Falbel, 1996, p. 274). A divisão da história em três eras não era nova e exerceu influência no pensamento do abade de Fiore. No entanto, este apresenta uma novidade, que consiste na direta associação entre os status do mundo e as pessoas da trindade, “tornado assim manifesta a intervenção de Deus na história humana” (Rucquoi, 2004, p. 227).

É curioso notar que há um silêncio na fonte a respeito desta associação entre a profecia joaquimita e o relato da história de Guglielma. Assim, como também não sobreviveram outras fontes produzidas pelos devotos ou sobre eles, podemos apenas inferir que as ideias lançadas pelo abade de Fiore faziam parte ou ao menos influenciaram o repertório teológico do grupo.

A associação entre Guglielma e Cristo parte, sobretudo, de sua caracterização como encarnação do Espírito Santo. No entanto, nenhum comentário na fonte se dedica a explicar a possibilidade da relação entre a terceira pessoa da Trindade e o feminino.

Por esse motivo, consideramos interessante analisar algumas possibilidades de influências de outras tradições que podem ter inspirado a formulação teológica do grupo que foram consideradas heréticas. Todos os autores consultados acerca de uma possibilidade de entender o Espirito Santo pelo seu aspecto feminino apontam no sentido de uma tradição de longa permanência que associa o Espírito Santo ao feminino pelo viés linguístico, uma vez que as primeiras referências aparecem em línguas semíticas, como o hebraico, para as quais a palavra é gramaticalmente feminina (Newman, 1995, pp. 203-205).

São ressaltadas ainda tradições religiosas, também distantes geográfica e cronologicamente, que adoravam formas femininas de divindade e que, ao terem contato com o cristianismo, associavam o Espírito Santo, dentro da estrutura da Trindade, à figura da mãe, que complementava a lógica da criação, Pai/Mãe/Filho (Congar, 1983, pp. 155-164). Apesar de o tema do Espírito Santo feminino não ser recorrente no recorte temporal abordado pela pesquisa, encontramos alguns indícios, como raras representações iconográficas que retratavam o Espírito Santo em forma de mulher e ainda os escritos de algumas místicas contemporâneas, como Metchild de Magdeurg, que o associavam não apenas à mulher, mas mais especificamente à mãe (Newman, 1995, p. 208).

É interessante notar que a manifestação da chegada da Terceira Era profetizada por Joaquim de Fiore cria uma centralidade na devoção do Espírito Santo em uma época em que há um incremento ao culto mariano e uma proliferação de formas de religiosidade protagonizadas por mulheres. Esses movimentos, por sua vez, tinham como principal fundamento a aproximação entre estas mulheres e a humanidade, a corporeidade de Cristo (Bynum, 1991, p. 125). Aqui, a ligação entre elas e crenças e práticas associadas à eucaristia é significativa.

Dois trechos dos depoimentos chamam a atenção para esta análise. Adelina Crimela afirma: “Io credo che Guglielma sia la carne che è nata dalla beata Vergine e fu crocifissa in croce nella persona di Cristo” (Benedetti, 1999, pp. 244-245). E Francesco da Gabragnate diz:

[...] dal 1262 non era stato sacrificato né consacrato il solo corpo di Cristo ma col corpo dello Spirito santo che era la stessa Guglielma. Per cui Guglielma aveva detto di non curarsi di vedere il corpo di Cristo né il sacrificio, poiché ella vedeva se stessa (Benedetti, 1999, pp. 220-221).

Essas duas passagens associam os três principais elementos das crenças guglielmitas que tanto parecem ligadas aos desenvolvimentos religiosos da época: Guglielma é o Espírito Santo, é o corpo de Cristo e se manifesta no momento da consagração eucarística.

Segundo Bynum (1984), a partir do século XII, começa a se desenvolver o culto ao Jesus como Mãe, baseado, sobretudo, nas obras de cistercienses, mas não apenas. Essa crença também se associa à tendência de focar a religiosidade na humanidade de Cristo, como ressaltado anteriormente.

Ver Deus, ou Cristo, ou o Espírito Santo como feminino é parte da tradição devocional do fim da Idade Média, que é caracterizada pela crescente preferência por analogias retiradas das relações humanas, de uma crescente noção de um Deus amoroso e acessível, uma tendência geral no sentido de uma linguagem significativa, e uma reação de maior aceitação a todas as coisas naturais, inclusive o corpo humano físico (Bynum, 1984, pp. 129-130). Com isso, há neste período uma inclinação a valorizar o feminino a partir de imagens simbólicas – que não significam necessariamente uma valorização dessas práticas na realidade concreta – como gravidez, amamentação, entrega sexual e êxtase religioso. Esses elementos, então, fazem parte de uma teologia, típica dos movimentos religiosos do período, de afetividade que associa o papel feminino da mãe à visão de um Deus próximo e amoroso (Bynum, 1984, p. 130).

É interessante notar que neste mesmo período em que Deus se torna mais humano, o clero se torna mais divino, menos acessível e muito mais exclusivo. Esta exclusividade, dentre outras coisas, excluía as mulheres mais enfaticamente do exercício de atividades clericais. Tal processo pode, assim, ter gerado um consequente desenvolvimento de formas de religiosidade mais voltadas para o aspecto humano de Cristo, protagonizado em grande medida por mulheres.

Sendo assim, os relatos sobre Guglielma apontam para a presença, no contexto da Milão do século XIII, de elementos dinâmicos da efervescência religiosa do período, mostrando a centralidade de uma mulher em associação com o aspecto humano de Cristo e a formulação de uma substituição de homens por mulheres, tanto na figura da divindade quanto em uma hierarquia eclesiástica renovada. Esses elementos seriam condizentes com os anseios do período por uma nova era da humanidade que seria, no âmbito religioso, marcada pela centralidade na figura do Espírito Santo, em um contato próximo com Deus e em uma afetividade entendida como marcadamente feminina e maternal.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do exercício de caracterização de Clara e Guglielma nos processos que registram sua história, podemos estabelecer algumas comparações. Em primeiro lugar, a devoção a ambas as mulheres estava profundamente relacionada à vida em comunidade e à noção de amor caritativo. O amor como caridade não se referia necessariamente a práticas como a distribuição de alimentos ou de esmolas a pobres, mas sim ao amor mútuo, que era uma característica dos grupos religiosos laicos, mas que também pode ser observada nos depoimentos sobre Clara e suas irmãs.

Também o exemplo da liderança religiosa é marcante nos dois textos. As damianitas, por exemplo, estabelecem como as principais virtudes de Clara a sua humildade, demonstrada no cuidado atento que ela tinha em relação à vida de suas irmãs. Os devotos de Guglielma, por sua vez, criaram um grupo que compartilhava, além da crença em sua santidade, uma experiência religiosa intensa que os reunia em encontros nos quais as virtudes de Guglielma e seus ensinamentos eram pregados, seguindo, antes de tudo, o principal deles: a continuidade do convívio do grupo vivendo em amor mútuo.

Outras características do grupo envolvido nesta devoção são próximas àquelas atribuídas como marcas das chamadas confrarias. Como exemplos, podemos citar o ato de colocar-se sob a proteção do Espírito Santo10 e realizar celebrações e refeições coletivas como manifestação de um bom convívio, no qual homens e mulheres, clérigos e leigos se encontravam em pé de igualdade (Newman, 1995, p. 194).

Como vimos no caso de Clara de Assis, pode-se observar um vínculo entre o ideal de Imitação de Cristo e uma relação mais próxima com a humanidade corpórea de Cristo, de forma a fazer frente ao desenvolvimento de ideias como, por exemplo, àquela do dualismo cátaro. No entanto, em alguns casos, esse fenômeno acabou se desviando de seu objetivo anti-herético inicial para se transformar em mais uma possibilidade de vivência religiosa, que por vezes não foi passível de ser absorvida no seio da ortodoxia.

Esse tipo de santidade laica, vale ressaltar, se apresenta como um importante traço da espiritualidade do período, que marca uma mudança relacionada às possibilidades de acesso a uma perfeição cristã não mais restrita a uma relação institucional, eclesiástica ou regular (Vauchez, 1995, p. 146). Por outro lado, o culto a certas pessoas tidas como veneráveis poderia estar em descompasso com outra tendência da época, identificada como o controle do reconhecimento da santidade pelo papado, por meio dos processos de canonização.

Assim, parece interessante notar que a santidade reconhecida, canonizada, levando-se aí em conta também o processo de institucionalização da própria santidade, permanece como um privilégio destinado àqueles que se encontravam, como Clara, inseridos em uma entidade religiosa, reconhecida e aprovada pela hierarquia eclesiástica.

Para além dos elementos de identificação como santa ou herege, ao longo da análise, encontramos similaridades essenciais nos dois tipos de processo. Exemplo disso é sua estruturação como inquérito, que dava às testemunhas um papel central na formulação jurídica e fazia delas os instrumentos garantidores de alcance da verdade, desde que confrontadas por perguntas legítimas, produzidas por uma instituição competente.

A forma como as perguntas eram colocadas e as respostas que eram obtidas tem muito a dizer. No caso do processo inquisitorial, para os devotos de Guglielma que lhe prestavam culto, acreditavam em seus milagres de cura e a admiravam por seus gestos e palavras, a absolvição foi garantida, mostrando que o culto à santa não oficialmente reconhecida não era um erro merecedor de uma penalidade. Isso mostra, ainda, que os inquisidores estabeleciam parâmetros para distinguir com clareza quem eles percebiam como simples devoto e quem estava incorrendo em desvio doutrinário.

No caso do processo de canonização, da mesma forma, as testemunhas eram arguidas sobre os temas mais caros ao reconhecimento do culto e as respostas fornecidas formaram o arcabouço sobre o qual a verdade sobre a santidade emergia. Dessa maneira, os depoentes no processo de Clara dão informações que serão avaliadas por autoridades competentes capazes de julgar a validade do culto. Uma vez que sabemos que o desfecho do processo levou à efetiva canonização de Clara, percebemos que os elementos enunciados pelas damianitas e outros devotos foram considerados legítimos.

Essas convergências nas formas e no conteúdo dos processos mostram as possibilidades de se estudar a santidade e a heresia no século XIII como fenômenos múltiplos e complexos. Nos casos aqui analisados, procuramos realizar um duplo exercício de desconstrução dos discursos: o do ideal de santidade feminina em Clara, e aquele da oposição santa versus herege imposta à figura de Guglielma.

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1 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Largo de São Francisco de Paula, n. 1, sala 311, Centro, Rio de Janeiro-RJ. CEP 20051-070. Brasil. E-mail: andrearftorres@ufrj.br

2 Usamos aqui o conceito de regime de verdade de acordo com Michel Foucault (2014, p. 51-52), para quem “a verdade não existe fora do poder ou sem poder. [...] A verdade é deste mundo; ela é produzida nele, graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instancias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro”.

3 Aqui nos referimos, sobretudo, aos capítulos 90 e 108 do Speculum Perfectionis, escrito por Frei Leão em 1227, no qual a conversão de Clara é descrita como sendo o momento em que esta se torna “principal emuladora do bem-aventurado Francisco na conservação da perfeição evangélica” e encarregada de construir uma comunidade na qual ela e suas irmãs viveriam provendo “alegre, agradecida e discretamente a seus corpos com as esmolas que o Senhor lhes desse” (Pedroso, 2004, p. 368).

4 No caso de Francisco, a pobreza estava intrinsecamente ligada a outros traços fundamentais de sua vivência, como a pregação itinerante. Na itinerância, mais especificamente, residia a resistência do papado, já que tal modo de vida, mesmo tendo sido aceito para homens, não deveria ser seguido na vida religiosa feminina.

5 A Bula Gloriosus Deus foi o documento enviado pelo Papa Inocêncio IV ao Bispo de Espoleto, e 1253, solicitando a abertura do processo de canonização de Clara.

6 A ideia de a debilidade de Clara sendo apresentada como mais uma comprovação de sua santidade está presente, de forma mais ou menos semelhante, em todos os testemunhos que compõem o processo.

7 Em outro momento, a roupa de Guglielma aparece como traço de união entre os devotos. Em um dos depoimentos, o inquisidor Frade Guido pergunta a Andrea Saramita, um dos principais acusados das crenças heréticas do grupo, porque razão aqueles que eram da congregação e devoção a domina Guglielma portavam vestes de cor moreto, ou seja, castanhos acinzentado. Andrea respondeu que, como Guglielma vestia-se desta cor, eles se vestiam em conformidade com estas vestimentas quando se reuniam, a fim de que todos parececem da mesma congregação e devoção. (Benedetti, 1999, p. 143).

8 No próprio processo de canonização de Clara vemos uma referência a essa inferiorização. Um dos seus milagres foi realizado a um cavaleiro de Assis, que havia abandonado sua esposa, enviando-a de volta à casa dos pais, pois não podia conceber. Após anos separados, o marido ouve de Clara que esta teve uma visão, de que sua mulher lhe daria um filho. Eles voltaram a se unir e deram origem a um menino (Pedroso, 2004, p. 109).

9 As disposições da Santa Escritura nos mostram três status do mundo. O primeiro no qual estivemos sob a lei; o segundo no qual estamos sob a graça; o terceiro, que esperamos logo, sob uma graça mais ampla. [...] O primeiro estado foi o do conhecimento – scientia –; o segundo o do poder da sabedoria; o terceiro o da plenitude do intelecto. O primeiro o da escravidão servil, o segundo o da servidão filial, o terceiro o da liberdade. [...] O primeiro status pertence ao Pai, o segundo ao Filho e o terceiro ao Espírito Santo (Crocco, 1980, p. 209).

10 Esta questão pode ser de especial interesse ao se analisar o conteúdo da formulação teológica considerada como crença herética pela Inquisição, baseada na alegação, feita por alguns membros do grupo, de que Guglielma seria uma encarnação do Espírito Santo.