Specula Revista de Humanidades y Espiritualidad

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A PARTICIPAÇÃO MENDICANTE NO REGIME DE VERDADE DA IGREJA ROMANA (SÉCULO XIII)

THE MENDICANT PARTICIPATION IN THE REGIME OF TRUTH OF THE ROMAN CHURCH (13th CENTURY)

André Rocha de Oliveira*

Fechas de recepción y aceptación: 20 de mayo de 2022 y 23 de julio de 2022

DOI: https://doi.org/10.46583/specula_2022.4.1065

Resumo: O presente artigo tem por objetivo apresentar a contribuição dos frades mendicantes (dominicanos e franciscanos) para a manutenção do regime de verdade da Igreja Romana durante o século XIII, regime que se encontra em constante construção/reconstrução desde o século XI. Adotando como ponto de partida as ideias de Michel Foucault, o texto discorre sobre mecanismos, instâncias, maneiras e status envolvidos no processo responsável por transformar um discurso em verdade para determinada sociedade. Para tanto, será abordado um caso: a sociedade do Ocidente medieval, mais especificamente da região da península Itálica.

Palavras-chave: Regime de verdade, Igreja Romana, dominicanos, franciscanos

Abstract: This article aims to present the contribution of the mendicant friars (Dominicans and Franciscans) to the maintenance of the regime of truth of the Roman Church during the 13th century, regime which has been in constant construction/reconstruction since the 11th century. Taking Michel Foucault's ideas as a starting point, the text discusses the mechanisms, instances, ways and status involved in the process responsible for transforming a discourse into truth for a given society. To this, will be addressed one case: the society of the Medieval West, more specifically from the Italian peninsula region.

Keywords: Regime of truth, Roman Church, Dominicans, Franciscans

1. INTRODUÇÃO

Verdade. Eis uma palavra fascinante. E mais fascinante ainda é como aparece na e para a sociedade. Seu apelo é inegável. E não é preciso ir muito longe ou recuar demais no tempo para constatar isso; recorrer a ela pode avalizar qualquer coisa. Mas o que a faz ser assim? Certamente, como indica Foucault (2016), sua intensidade passa pela capacidade de distinguir o verdadeiro do falso, dotando o primeiro de efeitos específicos de poder.

É, portanto, em termos de poder que a verdade deve ser analisada, afinal, ela inexiste fora dele ou em sua ausência (Foucault, 2016). Deduz-se, a partir disso, que a verdade é objeto constante de disputas dentro de uma sociedade. Contudo, como também nos diz o referido autor, não é “em favor da verdade” que as lutas são travadas, “mas em torno do estatuto da verdade e do papel econômico-político1 que ela desempenha” (Foucault, 2016, p. 53).

Por conseguinte, as relações de poder que envolvem a verdade não se dão ao nível do discurso veiculado. Isso não significa dizer que este seja desprovido de importância. Não é isso. Foucault mesmo sinaliza a relevância ao situar a verdade – e, sobretudo, sua capacidade de gerar efeitos de poder – no próprio enunciado (Foucault, 2010). Então, senão aqui, em que nível se situam esses embates?

Eles se encontram, podemos apontar, no “conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados” (Foucault, 2016, p. 54). É aqui, em torno do controle sobre a produção dos enunciados, que as distintas forças atuantes em determinada sociedade se digladiam pelo monopólio sobre a economia política da verdade.

Conclui-se disso, portanto, que a verdade é produto deste mundo. Ela não é algo que exista a priori, sendo necessário apenas a descobrir. É, pelo contrário, produzida pelos grupos que compõem a sociedade; sendo consequência direta das relações de poder que a atravessam. A verdade é, pode-se assim dizer, o discurso produzido pelo segmento “vencedor”, que é imposto – de forma persuasiva ou mesmo coercitiva – como verdadeiro para todo o conjunto social.

Os demais discursos, elaborados pelos setores derrotados, são, consequentemente, taxados como falsos e desacreditados perante a sociedade. Assim, enquanto um (ou mais de um) é reforçado, legitimado, reproduzido à exaustão, outros são desqualificados, desprezados, esquecidos. No fim, é esse processo que dota o verdadeiro de certos poderes; poderes estes que são usufruídos por seus produtores.

Mas esse processo não se encerra por aí. Ele está sempre se renovando, sempre em funcionamento. Isso acontece porque em cada sociedade a verdade está ligada a sistemas de poder que a produzem e sustentam, enquanto os efeitos de poder que ela gera findam por reproduzirem-na em uma marcha contínua (Foucault, 2016). Esses sistemas de poder também são chamados de regime de verdade:

Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros [...]; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (Foucault, 2016, p. 52).

O regime de verdade é, então, responsável por colocar a verdade “em funcionamento”, assim como todos os seus efeitos de poder. É nele que são estabelecidos os “mecanismos e instâncias” – que definem “a maneira como se sanciona uns e outros” – capazes de separar os enunciados que contêm a “verdade” que se quer que seja verdadeira dos enunciados que se quer que sejam falsos.

Tal regime tem vez em distintas localidades, em distintas temporalidades. E, importante observar, muitas vezes há regimes, e não regime. O que isso significa? Significa que diferentes grupos, segmentos, instituições, etc. de certa sociedade possuem os próprios regimes de verdade, isto é, detêm um sistema particular capaz de legitimar o discurso de sua predileção. Complementando, então, o que foi indicado antes: a verdade seguida pelo conjunto da sociedade é resultado do regime “vitorioso” naquilo que podemos chamar de “luta de regimes de verdade”.

Na Idade Média não é diferente. Nesse período, sobretudo a partir do século XII, com a ascensão dos Staufen ao trono imperial, duas instituições são proeminentes na construção – e reconstrução – de regimes de verdade próprios: a Igreja Romana e o Sacro Império Romano. As querelas entre essas duas forças culminarão em um acalorado debate em torno da economia política da verdade no início do século XIV.2

Antes de prosseguir, porém, é importante fazer uma ressalva. Não se deve supor que o regime de verdade seja, necessariamente, uma iniciativa consciente promovida por determinado grupo no tempo-espaço – como a instituição eclesiástica ou o império. Não é isso. Reconhecer regimes de verdade, identificar seus elementos e apreender seu funcionamento é tão somente um exercício historiográfico. Trata-se de interpretar um conjunto específico de ações praticado por algum grupo em certo período e lugar.

Voltando ao medievo, a respeito do regime que se verifica em constante construção/reconstrução pela Igreja Romana, interessa-nos aqui debater/discutir como ele se configura no decorrer do século XIII – período marcado por intensas hostilidades entre a instituição clerical e o império (e seus seguidores). E o motivo para isso reside no fato de ser nesse século que a ordem mendicante surge e se organiza. Defendemos que a contribuição desses frades para o regime em desenvolvimento é imprescindível.

Sem mais delongas, o presente artigo tem por objetivo apresentar, a partir da historiografia produzida acerca dos mendicantes, o papel desses frades no regime de verdade erigido pela cúria romana no século XIII. Cabe, desde já, pontuar que esse exercício não se esgota neste texto. Além dos elementos apresentados aqui, muitos outros poderiam ser inseridos. Logo, o que será exposto nas próximas páginas deve ser considerado um esboço, uma primeira versão, que, com o tempo (e o avançar da pesquisa), ganhará a devida robustez.3

O texto está dividido em cinco partes. Na primeira, é apresentado de maneira breve o que vem a ser o regime de verdade da Igreja Romana; busca-se com isso acentuar o contexto em questão, cujas características demandam constantemente a negociação e a persuasão para se alcançar objetivos. A partir da segunda parte, ingressamos nos elementos do regime de verdade em si, obedecendo a seguinte ordem: mecanismos, instâncias, maneiras e status.4 Em cada um desses pontos colocamos em relevo a participação mendicante.

2. ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O REGIME DE VERDADE DA IGREJA ROMANA

Antes de ingressar nos elementos que constituem o regime de verdade produzido pela Igreja Romana – destacando a contribuição mendicante – se faz necessário tecer algumas considerações a respeito da localização desse regime no tempo-espaço. Na introdução, apontamos o século XIII como recorte devido ao advento mendicante. Contudo, esse regime não nasce nesse momento. Sua gênese, percebemos, remonta ao século XI, quando tem início o fortalecimento do instituto papal.

Esse fenômeno se dá em paralelo às várias reformas conduzidas por distintos pontífices desde meados desse século. Essas reformas, não obstante suas vicissitudes e descontinuidades, buscam promover significativas transformações na organização tanto da Igreja Romana, quanto da própria cristandade. A distinção entre clérigos e leigos, a rejeição das práticas simoníacas e o cuidado com o comportamento moral dos integrantes da instituição eclesiástica são algumas de suas características (Silva & Lima, 2002).

Se, por um lado, o papado conduz os movimentos reformistas, por outro, vê-se em meio a intrincadas relações de poder. As ambições imperiais, que se fazem sentir na península Itálica desde o século X, com Oto I, culminam, no decorrer do século XI, com a ruptura entre o bispo de Roma e as famílias aristocráticas da região. Essa cisão, como analisa Rust (2019), obriga o pontífice a buscar bases de apoio fora do Lácio. Em consequência disso, o papado que emerge no século XII é modelado por alianças suprarregionais.

O século XII presencia uma maior inserção do papado no cotidiano do tecido social da cristandade. No entanto, isso não acontece sem resistências. As relações de poder se fazem presentes a todo momento, como aponta Rust (2019, p. 66):

A Cristandade não era uma estrutura monolítica encimada pelo papa e as decisões desse último não atingiam o cotidiano das pessoas comuns com o estrondo de um raio de Zeus. Teses recentes provam quão frágil é a sustentação dos documentos para a imagem de um polo monopolizador dos critérios decisórios (Roma) em um ambiente uniforme de possibilidades de execução (Cristandade). Tal caracterização apaga atritos, tensões, pressões, concessões, pactos, negociações, derrotas e impasses. Mais do que unitária, a ordem política marcada pela ascensão continental do papado era caracterizada pelo pluralismo.

O século XIII constitui-se como um cenário no qual “atritos, tensões, pressões, concessões, pactos, negociações, derrotas e impasses” também balizam a atuação do papado nas relações de força com as cidades – principalmente – do norte da península Itálica. Aqui, os interesses de comunas, contados, famílias aristocráticas, artesãos, mercadores, estrangeiros, guelfos, gibelinos e de tantos outros se misturam em um emaranhado de fios extremamente complicados de desembaraçar.

Guerras, atritos e tensões são a regra. Soma-se a isso a instabilidade constante. A própria sucessão de formas de governo nas comunas evidencia isso: cônsules, potestades e doges, que se sucedem no “comando” das cidades ao longo dos séculos XII ao XIV, nada mais são do que tentativas de hierarquizar os interesses e administrar as diatribes entre os diversos atores que compõem o tecido social urbano (Gilli, 2011). O controle sobre o contado5 é um desafio permanente.

Um exemplo disso é Gênova. Sua relação com o território circundante na Ligúria é bastante volúvel. Apesar de se verificar uma maior estabilidade nas interações a partir do fim do século XI, os conflitos não cessam. Os esforços genoveses em controlar o território, tanto no Levante, ao leste, quanto no Ponente, a oeste, longe de apaziguar as tensões contribuem para agravá-las. Como resultado, o contado é uma fonte constante de preocupações ao longo dos séculos XII e XIII, quando eclodem revoltas sempre que Gênova passa por alguma turbulência (Guglielmotti, 2018).

No contexto das cidades italianas, portanto, agradar um significa contrariar outro; beneficiar este implica prejudicar aquele. Não há para onde fugir, não se pode contentar a todos. Em tão delicado jogo, o controle sobre a produção discursiva e o monopólio sobre a economia política da verdade são imprescindíveis a quaisquer ambições. Isso porque atingir qualquer objetivo em tais circunstâncias passa impreterivelmente pela persuasão de seus jogadores.

Para isso, discursos são escolhidos, mecanismos são produzidos, instâncias são reconhecidas, maneiras de transmissão são avalizadas e status são demandados para estabelecer o que é verdadeiro e o que é falso perante a sociedade. Em uma expressão, regime de verdade. Esses esforços abarcam um vasto período, que compreende os séculos XI-XIV. E, cabe pontuar, não são lineares nem regulares. As ações que configuram o regime de verdade da Igreja Romana ora adquirem maior fôlego, ora parecem deixadas em segundo plano.

No século XIII, porém, tal regime ganha novo e significativo impulso. Seja decorrente do perigo herético, seja como consequência do acirramento dos ânimos entre papado e império. “Sorte” do sumo pontífice contar com um original e poderoso instrumento nessa iniciativa: as ordens mendicantes. Como se verá nas próximas páginas, estas cumprem um papel fundamental na contínua construção/reconstrução do regime de verdade da Igreja Romana.

3. O PAPEL DOS MENDICANTES NO REGIME DE VERDADE DA IGREJA ROMANA

Como vimos, o regime de verdade da Igreja Romana, em constante reconstrução, sempre bom reforçar, não é criado no século XIII; mas bem antes disso. Porém, é nesse século que esse regime é exigido sobremaneira, muito por conta dos fatores indicados no último parágrafo. Além disso, o advento das ordens mendicantes nesse mesmo período acarreta contribuições a tal regime; de modo que atentar para o seu papel nesse sistema de poder é imprescindível. Sua atuação se faz sentir nas “engrenagens”. Sem mais delongas, vejamos como isso ocorre.

3.1. Os mecanismos

Mecanismos. O que seriam? Como poderiam ser definidos? Partindo de uma definição contemporânea, o termo pode ser traduzido como um conjunto de elementos que concorrem para a atividade de uma estrutura (Houaiss et al., 2009). Esse significado certamente é pertinente. Mas é preciso ir um pouco além. Assim, mecanismo deve ser compreendido como um ou vários instrumentos concretos, isto é, dotados de materialidade, capazes de proporcionar o “funcionamento” de algo.

Mecanismo, portanto, deve ser assimilado como um objeto, uma ferramenta a ser, de fato, utilizada. A produção letrada, nesse sentido, pode ser apontada como o principal mecanismo em vigor no século XIII. O contexto é propício. A difusão de uma cultura que preconiza o escrito é fortalecida, desde o século XII, pelo prestígio que seu uso pelo papado lhe confere (Rust, 2019). E mais, a valorização do uso da escrita é uma constante entre as cidades italianas no século XIII (Gilli, 2011).

Seus usos são variados; vão desde as transações comerciais, que são registradas em forma de texto (Gilli, 2011) até escritos que buscam relatar a história das cidades, como é o caso dos Annales Ianuenses, uma “história oficial” de Gênova produzida pela comuna entre 1224 e 1293 (Macchiavello & Rovere, 2018). Assim, a produção de crônicas, cartas, bulas papais, tratados, hagiografias, etc. atesta a relevância da escrita nesse período.

Esses textos podem registrar e veicular os mais diversos conteúdos, não importando a que gênero pertençam, nem o que se espera deles de antemão. Ou seja, apesar de suas diferenças, qualquer modalidade textual pode sempre abarcar mais de uma finalidade. Portanto, não é preciso ser um tratado para que um texto possa discorrer sobre política; igualmente, não é obrigatório ser uma crônica para que um escrito possa conter dados históricos. Nem mesmo é necessário ser uma hagiografia para poder falar dos santos ou de seus cultos.

Essa transdisciplinaridade, para usar uma expressão contemporânea, que atravessa a produção letrada medieval, proporciona, assim, um meio ideal para a propagação dos discursos produzidos pela Igreja Romana, bem como pelas instâncias por ela reconhecidas. Os mendicantes se destacam nesse sentido, com a redação de diferentes obras; mas uma modalidade desperta especial atenção: a hagiografia. Habitando os textos mais diversos, aqueles discursos encontram nos relatos sobre santos e seus cultos um importante veículo de divulgação.

A hagiografia é um dos principais gêneros textuais lidos/ouvidos no medievo. Seu uso pode ser observado durante os ofícios, no momento das refeições, no processo de formação dos religiosos, etc. Composta por uma variada tipologia – como Calendários, Martirológios ou Vidas de santos, dentre outros –, e versando sobre figuras conhecidas e feitos maravilhosos, esse gênero goza de grande popularidade.

O advento das ordens mendicantes provoca algumas transformações nas hagiografias. A atuação dos frades influencia, de modo decisivo, a produção hagiográfica – tanto que os textos desse gênero, redigidos por essas personagens, passam a ser chamados de “hagiografias mendicantes” pela historiografia. Duas escolhas merecem ser destacadas: a redação em prosa e as funções que esses escritos passam a exercer.

No que tange à prosa, sua adoção indica, por um lado, um público mais restrito, composto por pessoas cultas, em sua maioria pregadores – que as empregam na produção de seus sermões. Por outro, indo em direção oposta, os conteúdos, marcados pelo teor didático-religioso, destinam-se à leitura pública,6 na qual são lidos em voz alta para diversos conjuntos de ouvintes (García de la Borbolla, 2011). Ou seja, o relato hagiográfico não está restrito apenas aos ambientes onde predominam letrados.

O uso da prosa enseja, ainda, um reflexo mais direto e fiel do pensamento (Zink, 2006), conferindo aos frades uma maior liberdade de ação. Nesse sentido, verifica-se algumas alterações nas funções iniciais. Assim, de um lado, as Vidas de santos redigidas pelos frades não estão mais voltadas predominantemente para a difusão do culto de determinado venerável, por exemplo. Vão além. Passam a servir como “uma cartilha de conduta religiosa destinada aos membros das Ordens, constituindo uma espécie de ‘espelho de frades’” (Miatello, 2013, p. 84).

De outro, ela passa de promotora da causa dos santos para divulgadora de um modelo específico de santidade, que está atrelado aos intentos políticos e pastorais da cúria romana, responsável por canonizar o venerável. Destarte, é mais comum de acontecer a canonização quando o postulante a santo em questão tenha se destacado durante a vida na luta contra a heresia ou na defesa da fé cristã (Miatello, 2013).

Exemplo modelar das hagiografias mendicantes é a Legenda aurea, uma compilação de Vidas de santos e festividades cristãs organizada pelo dominicano Jacopo de Varazze na segunda metade do século XIII. Pertencente à modalidade de compilação hagiográfica conhecida como legenda noua, ela reúne versões resumidas das legendas. Esta, além e por conta disso, destaca-se pelo caráter autoral atribuído ao responsável não apenas pela reunião dos textos, mas também pelas intervenções e reelaboração textual de suas fontes.

Pode-se observar esse exercício no legendário. Por um lado, verifica-se as ações centrarem-se na construção/transformação dos sentidos. Sendo assim, as operações que se exercem sobre os escritos originais têm por base opções e escolhas cujo escopo final é gerar e/ou modificar os sentidos dos textos, de modo que sirvam a certos interesses. Em outras palavras, essas ações buscam deixar as legendas mais alegóricas,7 uma vez que, “a procura pelo sentido oculto ou no texto ou na aparência, ocupa lugar considerável no pensamento e na arte literária da Idade Média” (Zink, 2006, p. 89).

Por outro lado, as intromissões buscam moldar tais textos para que assumam certa harmonia com o conjunto da obra. É possível observar nas Vitae que compõem o material a opção pela descaracterização histórica e geográfica (Maggioni, 2017). Desse modo, o legendário pode falar de assuntos que lhe sejam contemporâneos de maneira sutil, disfarçada, pois o “sentido é pensado não como imanente ao texto, mas como glosa que se revela por trás dele” (Zink, 2006, p. 90).

A Legenda aurea, então, deve ser compreendida como um conjunto de textos que “narra tanto sobre o tempo que conta como sobre o tempo em que se conta” (Teixeira, 2015, p. 61). Dito isso, pode-se apontar vários exemplos da atuação intervencionista e criativa do frade genovês. Detenhamo-nos em um deles.

O caso da Vida de Santa Inês ilustra bem isso. No curto relato, Inês (Agnes) é uma jovem virgem que vivera no século IV; ela recebe o martírio por rechaçar as ambições matrimoniais do filho do prefeito, a quem alega já possuir outro “esposo”: Jesus. Embora pequena, a narrativa se revela rica de diversas maneiras: recorre a autoridades como Agostinho e Ambrósio, conta com elementos didáticos e apresenta anedotas exemplares, como as que versam sobre Emerenciana, Constância e Paulino (Jacopo de Varazze, 2003, pp.183-186).

Cabe, neste momento, recorrer a um estudo realizado por Fleith (2014), no qual compara, entre outros pontos, a versão da Paixão de Inês presente na Legenda aurea com a mais antiga registrada em prosa. Se, de um lado, Fleith constata a alteração na disposição das passagens no texto de Jacopo, de outro, assinala que uma maior parte do relato que consta na fonte é mantida.

Interessa-nos aqui uma intervenção específica apontada por Fleith (2014): o acréscimo de passagens didáticas, como a enumeração das qualidades que as esposas esperam de seus cônjuges: “E começou a fazer o elogio desse amante, desse esposo, que tinha as cinco qualidades exigidas pelas esposas: nobreza de raça, beleza deslumbrante, abundância de riquezas, coragem e força, amor verdadeiro” (Jacopo de Varazze, 2003, p. 183). Tal trecho, sinaliza a autora, inexiste na versão antiga.

Um aspecto precisa ser considerado com atenção no que tange à legenda e ao acréscimo do dominicano: não há dúvidas ou ambiguidades interpretativas de que a narrativa de Inês consiste em um tributo, uma apologia à virgindade. Simultaneamente, caracteriza tal texto a percepção do casamento, recusado peremptoriamente no plano terreno enquanto enaltecido no plano espiritual – Jesus “esposo”. Dito isso, uma questão pode ser levantada: como os contemporâneos de Jacopo teriam recebido tal mensagem?

A título de hipótese, é possível apontar que pelo menos os conterrâneos genoveses – o legendário é produzido em Gênova – o fariam sem entusiasmo, ou mesmo de forma negativa. Em uma sociedade como a genovesa, na qual o casamento é não só um instrumento capaz de assegurar a paz – mesmo que provisória – entre poderosas famílias que vivem às turras, mas também um meio de estabelecer importantes alianças sob a ótica econômica (Musarra, 2018; Bezzina, 2018), é pouco provável que uma mensagem que desestimule tal prática seja bem recebida.

É, então, nesse contexto que o acréscimo de Jacopo ganha outro sentido. Ao elencar os atributos desejáveis pelas esposas, sabendo que nenhum homem é capaz de reunir todas as qualidades, pois não é possível se igualar a Jesus, o frade sugere que tais características devem ser buscadas como um ideal; uma utopia a ser perseguida por todos os homens.

É, então, sintomático perceber que dois dos traços designados pelo dominicano – abundância de riquezas, e coragem e força – são justamente os “requisitos” exigidos para o ingresso nas elites genovesas durante o século XII; características ainda bastante apreciadas no decorrer do XIII. O alicerce social da aristocracia genovesa, de um lado, não se encontra no sangue, e sim nas interações econômicas, o que faz a riqueza ser um elemento de entrada. De outro, como se trata de uma cidade envolvida em constantes guerras e revoltas, as habilidades militares também têm o seu valor (Bezzina, 2018).

É, então, por meio de um acréscimo que Jacopo modifica os sentidos do relato permitindo uma leitura alegórica que, longe de afastar a ideia do casamento terreno, a promove entre as elites genovesas ao indicar que seus integrantes masculinos já contam com pelo menos duas das características mais esperadas. Dada a simplicidade e maneira didática como esse trecho é colocado, não deixa de ser razoável inferir que tenha sido objeto de intenso uso nos sermões produzidos pelos frades daquela cidade.

O exemplo da narrativa de Inês permite, portanto, observar as principais opções das hagiografias mendicantes, mesmo não sendo uma criação genuína de um frade – mas que conta com sua intervenção. O texto presente na Legenda aurea está redigido em prosa, enaltece um comportamento a ser seguido pelos grupos de religiosas mendicantes8 e apresenta uma venerável em sintonia com o ideal de santidade preconizado pela Igreja Romana,9 uma vez que é uma ferrenha defensora da fé cristã.

As hagiografias, portanto, constituem, ao longo do século XIII, uma das principais contribuições mendicantes no que toca à produção de mecanismos para o regime de verdade da Igreja Romana. Sozinhos, porém, os mecanismos não são suficientes para legitimar ou validar um discurso como verdadeiro para uma sociedade. Embora sua relevância seja indiscutível, eles precisam de ajuda. É necessário que uma ou mais instâncias o sancionem como verdade.

3.2. As instâncias

Instância é a autoridade ou organismo que tem poder de decisão (Houaiss et al., 2009). Aqui, é aquela autorizada a sancionar determinado discurso como verdadeiro, ou, se for o caso, taxá-lo como falso. No regime de verdade da Igreja Romana há algumas instâncias reconhecidas como aptas para cumprir esse papel, dentre as quais é possível destacar os integrantes da hierarquia eclesiástica e das ordens religiosas, como as que mais interessam aqui: as ordens mendicantes.

Para compreender a relevância dessas figuras, é preciso contextualizar sua atuação. O período denominado como Idade Média Central (séculos XI-XIII) presencia significativas mudanças segundo a historiografia: aumento do contingente populacional; movimentos migratórios; acirramento dos atritos entre o papado e os poderes seculares; revigoramento do comércio; etc. No entanto, um fenômeno pode ser considerado o epicentro dessas transformações na sociedade medieval: o (re)florescimento urbano.

O despertar das cidades, impulsionado pelo desenvolvimento comercial, tanto em nível local quanto regional e continental (Baschet, 2006), promove uma significativa alteração de valores, comportamentos, gostos, códigos de habitação, alimentação e vestuário; além de novas formas de sociabilidade mais igualitárias, dentre outros aspectos (Le Goff, 1996).

Essas mudanças, por sua vez, repercutem também na esfera eclesial. Sinal disso é o aparecimento contínuo de grupos de devotos – humiliati, valdenses, albigenses, etc. – que muitas vezes não possuem nenhum vínculo com a Igreja Romana, e optam por um estilo de vida ascético, devendo sua subsistência à mendicância – característica mais marcante. Surgem, sobretudo, nas urbes da região do sul da França e do norte da península Itálica. Muitos findam por ser considerados hereges pela cúria papal.

A visão tradicional da historiografia aponta a proliferação desses grupos como uma das consequências da incapacidade da Igreja Romana em suprir as novas demandas espirituais dos fiéis, necessidades que têm vez no rebuliço provocado pelas cidades. Uma possível causa para essa incapacidade é apontada por Bloch (2012):

Recrutado sem suficiente controlo e imperfeitamente formado – na maior parte das vezes ao acaso das lições dadas por algum cura, talvez até mediocremente instruído, ao rapazinho que, ajudando à missa, se preparava para receber as ordens –, o clero paroquial era, no seu conjunto, não só intelectual como moralmente, inferior à sua missão (p. 109).

Essa deficiência colabora para fazer das cidades lugares propícios àqueles grupos. O sucesso destes no seio das urbes advém da capacidade que seus representantes têm para “alcançar” as novas necessidades espirituais dos citadinos (Le Goff, 1996). Eles se valem de uma linguagem mais direta e próxima ao cotidiano dos habitantes dos centros urbanos do que aquela empregada por monges e integrantes do clero paroquial (Burton, 2009).

Fervilhar das cidades, com a eclosão de diversas transformações, especialmente na vida religiosa. Despreparo das instâncias eclesiásticas tradicionais. Suspeições e mesmo ameaças trazidas pelos grupos de devotos, que muitas vezes fogem a qualquer controle da autoridade eclesiástica. Tudo isso culmina em um crescimento das divisões internas da Igreja Romana sobre como proceder (Powell, 2008).

O principal ponto de cisão na hierarquia eclesiástica encontra-se em como lidar com esses grupos. Por um lado, despertam simpatia, afinal, contam com muitos seguidores nos meios populares, favorecem os ideais reformistas e parecem ortodoxos. Por outro, porém, suscitam reações adversas, desconfianças quanto à influência dessas figuras e à liberdade de que gozam para pregar de forma itinerante, muitas vezes sem qualquer anuência prévia (Thompson, 2011).

A saída encontrada para tal entrave revela-se em começos do século XIII, quando o papado resolve abraçar alguns desses grupos mendicantes.10 Dois logo se destacam: os seguidores de Francisco de Assis, de um lado, e os de Domingos de Gusmão, de outro. Franciscanos e dominicanos, como serão respectivamente conhecidos, vão desempenhar, no transcorrer do século XIII, um importante papel a serviço da Igreja Romana.

É essa atuação que nos interessa sublinhar aqui. Como instâncias aptas a sancionar as verdades produzidas – muitas vezes com sua participação – pela autoridade eclesiástica, é imperativo discorrer sobre as ações que legitimam esses mendicantes reconhecidos pela cúria.

O século XIII presencia uma rápida e constante expansão mendicante. A organização inicial da área de atividade dos dominicanos, que a dividem em províncias, fornece um bom exemplo de como a ordem se difunde celeremente pela cristandade. As oito primeiras províncias criadas estão situadas nos seguintes locais: Espanha, França, Provença, Lombardia, Roma, Inglaterra, Hungria e Germânia. Antes da década de 1230, Polônia, Grécia e Terra Santa têm presença dominicana (Palacios, 1996).

Os franciscanos também se disseminam pela cristandade, chegando, inclusive, a mais localidades do que os dominicanos, uma vez que alcançam cidades de pequeno e médio portes, não se restringindo aos grandes centros (Gilli, 2011). Uma região que vai contar com forte presença dos frades menores é a península Ibérica, onde se instalam em cidades como Toledo, Santiago de Compostela e Zamora (Rojo, 2014).

Ponto a se observar a respeito da expansão e do assentamento de dominicanos e franciscanos é a relação que os frades estabelecem com as autoridades laicas locais. Essa interação revela-se bastante proveitosa aos mendicantes e, em certo sentido, à Igreja Romana também.

Na península Itálica, as doações, sejam de patronos e benfeitores, sejam de humildes citadinos, apesar de crescentes não são capazes de prover as necessidades dos frades de maneira regular. A mendicância em si pouco contribui para a subsistência.11 São as comunas que proporcionam o suporte que os mendicantes necessitam. E isso é regulado pelos próprios estatutos comunais (Powell, 2008).

O respaldo comunal se explica pelo papel desempenhado pelos frades. Estes fazem parte dos órgãos financeiros, judiciários ou diplomáticos comunais; atuam como árbitros no estabelecimento da paz nas e entre as cidades; estão envolvidos com o combate às heresias,12 etc. (Gilli, 2011). Não é somente na esfera “burocrática” que os mendicantes interagem com o cotidiano das comunas, isto é, para além das práticas evangelizadoras.

Novamente podemos recorrer à Gênova para exemplificar essa participação. Entre 1229 e 1230, ambas as ordens se envolvem em questões relevantes para a vida na cidade. De um lado, são publicamente consultadas a respeito de questões morais; e suas posições findam por gerar implicações para a urbe como um todo. De outro, os frades unem-se a mulheres de vários estratos sociais que reivindicam o término ou pelo menos a redução das execuções, mediando tais demandas com as autoridades comunais (Polonio, 2018).

É possível ainda extrapolar os limites da península Itálica. Um episódio modelar das relações estabelecidas entre mendicantes, no caso os franciscanos, e monarcas encontra-se no Reino de Castela, na península Ibérica. A Coroa, além de auxiliar a instalação e disseminação dos frades menores pelo território peninsular, também coloca essas personagens a seu serviço. Logo, os religiosos desempenham funções típicas da administração régia. E mais, atuam como “confessores reais”, ou seja, conselheiros e representantes do monarca, e estão encarregados da tutela dos jovens príncipes (Rojo, 2014).

Esses laços com comunidades das mais variadas regiões e, sobretudo, com as autoridades locais são fundamentais para a chancela dos mendicantes como instâncias aptas a sancionar o verdadeiro e o falso. A capilaridade e a inserção nos espaços de governança fazem desses institutos meios para transmitir – e defender – as posições da Igreja Romana. Do mesmo modo, também facilitam consideravelmente o descrédito dos discursos que se quer que sejam tomados como falsos.

É preciso, por fim, situar a atuação dos frades a serviço do papado. Pode-se inferir o prestígio dos mendicantes junto à cúria romana a partir de uma mera constatação numérica: o primeiro franciscano nomeado bispo – Leo Valvassori, bispo de Milão – remonta a 1244, sob o pontificado de Inocêncio IV. Trinta anos depois, são trinta e dois bispos franciscanos. Em princípios do século XIV esse número sobe para cinquenta e seis (Moorman, 1968).

A elevação a bispados, porém, não exprime as ações dos mendicantes no serviço papal. É possível apontar várias frentes que exemplificam a atuação dos frades. Vamos nos ater a três delas: como capelães nas campanhas militares; a Sociedade da Paz e da Fé, e a Inquisição.

Em primeiro lugar, os frades participam ativamente como capelães nos conflitos militares. Responsáveis por pregar aos soldados e ministrar a confissão, dentre outras funções, essas figuras são requeridas por grande parte dos exércitos. Com o auxílio de seus altares portáteis – permitidos pela cúria romana em diversas bulas13 –, dominicanos e franciscanos destacam-se nos cuidados pastorais nos campos de batalha.

Acerca dessa participação nas campanhas promovidas pelo papado, cabe destacar o conflito com os descendentes do imperador Frederico II. Aqui, o envolvimento mendicante é relevante e voluntarioso – as ordens papais vêm apenas confirmar a predisposição dos frades. Estes fornecem um importante suporte às tropas de Carlos de Anjou durante o embate, a ponto de os tornar objetos de captura e execução pelas forças imperiais (Bachrach, 2004).

Em segundo, temos a Sociedade da Paz e da Fé, que surge na segunda metade do século XIII. O ano de 1266 marca a queda do último Staufen,14 o que sugere uma relativa calmaria na península. A partir de então, o papado envia legados para as cidades que estavam dominadas por gibelinos15 com o intuito de, por meio da inserção no jogo político local, reverter as relações de poder vigentes. Busca-se, com isso, trazer para a esfera de influência papal comunas antes leais ao Sacro Império Romano.

Placência serve de modelo nesse sentido. Esse reduto gibelino passa gradualmente ao controle da Igreja Romana e sedia a criação da Sociedade da Paz e da Fé, que vai se espalhar para outras urbes. Essa instituição, que tem por propósito principal submeter as cidades ao controle do papado e que comanda os recursos militares da urbe, está sob os cuidados de dominicanos e franciscanos (Gilli, 2011).

Terceiro, a participação na Inquisição. Esse tribunal consiste em um órgão judicial com maior capacidade de intervenção, cuja instalação independe das jurisdições locais ou dos tribunais diocesanos. É dotado de considerável liberdade de ação e pode durar indefinidamente, além de contar com técnicas elaboradas para identificar e acusar pessoas como hereges. A punição física aplicada pelo braço secular, viável a partir da tipificação da heresia como crime de traição, é uma importante característica desse tribunal (Catalina, 2020).

É, porém, a atuação dos frades nesse órgão que interessa aqui. E, diga-se de passagem, não é qualquer participação: os frades estão à frente dessa instituição. Disseminada a partir do pontificado de Gregório IX, inicialmente os bispos atuam como inquisidores. É, porém, com Inocêncio IV que as ordens mendicantes são alçadas ao posto de comando, em 1246. A ampla autonomia concedida pode ser atestada pelo direito de nomear inquisidores que é conferido ao mestre-geral e aos ministros provinciais (Moorman, 1968).

Dito isso, pode-se verificar o porquê de os mendicantes estarem aptos a sancionar o que é verdadeiro e o que é falso perante a cristandade. Isso decorre da inserção nas cidades, sejam as grandes, sejam as pequenas; da atuação junto aos órgãos de governança seculares, e das atividades desempenhadas a serviço do papado. Resta, no entanto, observar como os frades procedem para transmitir “a verdade” da Igreja Romana; tema do próximo tópico.

3.3. A maneira

Maneira pode ser assimilada, por um lado, como o método ou processo para realizar algo (Houaiss et al., 2009). Neste sentido, aqui maneira versa sobre o modo como os discursos produzidos são transmitidos à sociedade. Essa transmissão, por sua vez, contribui para a validação, legitimação e posterior reprodução desses mesmos discursos, além de propiciar o surgimento de outros. Por isso, a forma como essa difusão é operada reveste-se de uma importância singular.

Por outro lado, maneira deve ser vista como conduta social, ou seja, um modo habitual de falar, de gesticular, de agir em sociedade (Houaiss et al., 2009). Aqui, portanto, a maneira apresenta-se como mais do que um método para expor algo, ela configura um conjunto de práticas. Mas que práticas são essas? E, principalmente, para que servem?

Dentre as diversas maneiras/práticas mendicantes, tais como o uso de hábito específico; a confissão; a itinerância; etc., referimo-nos aqui às práticas discursivas realizadas pelos frades, que significam o mundo por meio da construção de sentidos e da propositura de interpretações. Dessa forma, intervêm no corpo da sociedade produzindo ordenamentos, distanciamentos, aproximações, rupturas, etc.16 No medievo, em uma palavra, chama-se a isso de pregação.

A prédica não é um fenômeno exclusivamente medieval. Ela surge na Antiguidade e se mantém viva até os dias de hoje. No entanto, durante o medievo a pregação assume contornos específicos. Entre os séculos XIII e XV, recorte que interessa aqui, está em voga a chamada pregação popular, que recebe esse nome por ser dirigida essencialmente aos leigos pertencentes às camadas mais humildes – embora a destinada aos clérigos e religiosos em geral ainda se faça presente (Beaulieu, 2006).

Até o século XII, a homília aparece como a modalidade de prédica dominante. Ela se ocupa em explicar detalhadamente passagens bíblicas e tecer comentários sobre o evangelho, e tem lugar, na maioria das vezes, durante as missas (Roberts, 2002). No século XIII, porém, observa-se a expansão do sermão, que consiste em uma exposição teológica erudita e de cunho moralizante que pode ser proferido tanto por via oral quanto por escrito (Camacho, 2015). A quantidade de sermões que são elaborados a partir desse momento suplanta a de homílias, embora não chegue a cessar a produção destas.

Os sermões destacam-se, nesse contexto, por sua capacidade de intervir sobre a organização social de onde são proferidos. Mais do que uma exortação sobre aspectos teológicos, apresentam aos leitores e ouvintes “uma visão do mundo cujos componentes políticos, sociais e religiosos [encontram-se] estreitamente entrelaçados” (Beaulieu, 2006, p. 367). Os sermões são, portanto, um “exercício de dizer o mundo e de construí-lo; oferecem-nos perspectivas de interpretação e de sensibilidade [...]” (Miatello, 2014, p. 114).

A própria Igreja Romana vê na prédica um valioso instrumento para assegurar sua posição perante a sociedade cristã. Assim, pode-se observar a preocupação com a pregação ser manifesta explicitamente durante o IV Concílio de Latrão, realizado em 1215. Sob a liderança de Inocêncio III, esse concílio culmina com a redação de 71 cânones;17 sendo um deles destinado especificamente para a questão da pregação: o de número 10. Esse cânone expressa a relevância do ato de “proclamar a palavra de Deus”, e estabelece que os bispos devem designar pessoas capacitadas para realizar tal ofício, conforme consta no trecho:

We therefore decree by this general constitution that bishops are to appoint suitable men to carry out with profit this duty of sacred preaching, men who are powerful in word and deed and who will visit with care the peoples entrusted to them in place of the bishops, since these by themselves are unable to do it, and will build them up by word and example.18 (IV Concílio de Latrão, 1215)

O cuidado com a capacitação dos pregadores – “homens que sejam poderosos nas palavras e nas ações” – é, por um lado, consequência, não se pode esquecer, do contexto turbulento das cidades de início do século, assoladas pelos movimentos heterodoxos. Por outro lado, decorrem do reconhecimento da cúria romana da necessidade de pregadores preparados para a prática.

O século XIII destaca-se, nesse sentido, pelo crescimento substancial da produção de manuais didáticos voltados à prédica: as chamadas ars praedicandi (Roberts, 2002). Longe de ser uma criação desse século – Agostinho, no século V, com sua De doctrina christiana, e Gregório Magno com a Regula pastoralis no século VI são exemplos disso –, esses materiais tornam-se mais comuns entre os pregadores e contribuem enormemente para a execução de tal tarefa.

As ars praedicandi são responsáveis por proporcionar, sobretudo, modelos de sermões e diversas sugestões úteis à prédica. Além disso, algumas dessas obras têm papel importante na especialização predicante. É o caso, por exemplo, da Summa de arte praedicatoria, do cisterciense Alan de Lille, produzida na virada do século XII para o XIII. Neste manual, constata-se a atenção para que os pregadores realizem as prédicas de acordo com o auditório. Em outras palavras, o monge reconhece a importância de cada pregação ser feita especificamente para cada tipo de audiência (Roberts, 2002).

Importante ressaltar que as ars praedicandi não estão sozinhas nessa incumbência. Roberts (2002) indica a existência de um “sistema retórico” que lhe serve de auxílio. Tal sistema, na verdade, consiste em outros materiais que se revelam tão úteis quanto os manuais. Desse modo, glosas das Sagradas Escrituras, coleções de exempla, florilegia, distinctione e similitudines despontam para os pregadores como valiosos recursos.

Dentro desse sistema retórico, o exemplum chama mais a atenção. Oriundo do mundo clássico, o exemplum foi cristianizado e usado ao longo do medievo. Presente nos mais variados textos, que vão desde a Bíblia até textos históricos, passando pelas hagiografias – a própria Legenda aurea está repleta deles –, o exemplum pode ser facilmente encontrado (Roberts, 2002).

Os exempla são anedotas que se caracterizam, para além do caráter pedagógico, pelo seu potencial quando usado para persuadir. E mais. Quando empregados nos sermões, atribuem um valor de prova ao que é dito. Isso acontece porque quando aparece no sermão o exemplum funciona mais como um argumento retórico do que como uma exemplificação. É, nesse sentido, um recurso a ser utilizado que não se reduz apenas à transmissão de um saber, mas sim à captação da atenção do leitor/ouvinte. O exemplum é capaz, assim, de despertar o interesse do espectador, conquistar sua boa vontade e o persuadir (Rocha, 2015).

Sozinho, porém, esse artifício não consegue atingir o seu máximo potencial. Não basta apenas o citar; é preciso mais. É preciso inspirar, comover, emocionar para que o sermão consiga, valendo-se do exemplum, arrematar o público, persuadi-lo. E não se alcança isso somente expondo as anedotas por meio de uma leitura monótona. Outras técnicas são necessárias. Técnicas estas que prefiguram uma performance.

Há orientações nesse sentido, que são encontradas nos mais variados textos: crônicas, hagiografias, cartas, etc. Isso, é claro, além das ars praedicandi. Desse modo, os pregadores fazem uso de uma extensa gama de artifícios: imagens ou símbolos, gestos, variação do timbre da voz, brados, simulacros de diálogos, etc. Enfim, exploram a interação com os públicos das mais diversas formas (Beaulieu, 2006; Kienzle, 2002). Até mesmo a escolha do local em que a prédica ocorre é pensada nesse sentido.

A pregação tem vez nos mais diversos – e mesmo inusitados – lugares. Se, antes dos mendicantes, costumava ser uma prática circunscrita a um espaço próprio, como as igrejas, com os frades verifica-se uma radical alteração. Em parte, pelo movimento característico desses religiosos, que estão em constante deslocamento; em parte, pela especialização da atividade, realizada cada vez mais segundo o público específico que a assiste (Kienzle, 2002), a prédica espalha-se por praças. E universidades. E torres (redutos da militia). E sedes de corporações de ofício. E sedes das múltiplas sociedades. E cemitérios. E uma infinidade de outros espaços, tanto intramuros quanto nos contados.

A pregação, assim, com todos os seus recursos, realizada em qualquer lugar, constitui a maneira por excelência para veicular e, mais importante ainda, convencer a outrem sobre a validade e legitimidade da mensagem transmitida. É, portanto, uma prática fundamental dentro do regime de verdade. No entanto, a prédica não pode ser feita por qualquer um; é preciso gozar de certo status.

3.4. O status

Status pode ser compreendido como posição favorável na sociedade; consideração, prestígio, renome (Houaiss et al., 2009). Status, portanto, está relacionado à pessoa. E tem mais a ver com o modo como outros veem esse ser do que com a figura propriamente dita. Em outras palavras, é a recepção em determinado grupo ou comunidade que define o status de alguém.

No regime de verdade, o status exerce um papel fundamental. Ele expressa uma autorização não-dita àquele que publicamente irá expor os discursos que a sociedade deverá aceitar como verdades. Desse modo, nesse sistema de poder status significa respaldo. Mais do que isso: a validação e legitimação daquilo que é dito é, em último caso, consequência do reconhecimento social (status) de quem o diz.

Como indicado no item instância, esse “quem” corresponde, aqui, aos mendicantes. Logo, é o status que estes possuem na comunidade em que estão inseridos que chancela o que é dito perante seus ouvintes. Não obstante à constatação da função desempenhada pelo conjunto de frades, e o decorrente usufruto de que essas personagens gozam, é possível verificar a imposição de limites.

Do mesmo modo que a já batida observação de Foucault, de que “não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (Foucault, 2010, p. 9), os frades também estão submetidos ao controle de suas ordens. Ou seja, não é qualquer frade que pode dizer qualquer coisa, em qualquer lugar, para qualquer ouvinte.

Em termos gerais, pelo que foi apresentado até aqui o simples fato de pertencer a uma ordem, dominicana ou franciscana, por exemplo, é suficiente para dotar o frade de um status que legitime sua fala. Contudo, é preciso reconhecer que nesses institutos há frades e frades, ou seja, a posição ocupada reveste o status da figura de um peso maior ou menor. Afinal, o prior provincial – no caso dos dominicanos – possui um status mais relevante do que o de um frade novato, por exemplo. Fato que autoriza aquele a dizer mais do que este.

Indicar todas essas personagens aqui, entretanto, não é nosso objetivo. Além do que, seria um verdadeiro trabalho de Sísifo apresentar todos os capacitados, uma vez que são muitos, espalhados pelos mais variados lugares.19 Concentrar-nos-emos, por conseguinte, em um único exemplo: Jacopo de Varazze, dominicano responsável pela produção da já mencionada Legenda aurea.

Não nos ocuparemos em traçar uma espécie de biografia desse frade nas próximas páginas. O foco neste momento é identificar os pontos que dotam essa personagem do status necessário para sancionar um discurso como verdadeiro ou falso. Dito isso, cabe aqui destacar a atuação do genovês em dois âmbitos: na ordem dominicana e na Igreja Romana em si.

Integrante da ordem dos irmãos pregadores desde meados da década de 1240, Jacopo é eleito prior do convento de Gênova em 1258. Essa eleição é tida como reconhecimento da sua erudição e da habilidade como pregador, o que lhe confere certa proeminência entre os colegas de hábito. Sua ascensão, porém, não para por aí. Em 1267, seu empenho é mais uma vez reconhecido por meio da indicação para a posição de prior provincial da Lombardia.

Essa província abrange parte considerável do Regnum Italicum, ou seja, o norte da península Itálica. Nesse momento, essa região encontra-se bastante conturbada devido ao conflito entre o papado e os herdeiros Staufen. É nesse contexto que Jacopo passa a ocupar um posto de relevância singular dentro do instituto; além disso, suas ações passam a alcançar um número elevado de cidades, muitas delas de destaque. Em decorrência disso, sua atuação, determinações e obras atingem um público considerável.

O período que fica no cargo permite inferir que o dominicano tem êxito no cumprimento da função. Apenas alguém preparado e competente o suficiente – além de bem relacionado e aceito pelo grupo – permaneceria tanto tempo em tal posto. Ao todo, são duas passagens e dezessete anos exercendo o papel de prior provincial: na primeira, de 1267 a 1277, e, na segunda, é reconduzido ao cargo entre 1281 e 1286 (Almeida, 2014). Teria sido também, interinamente, mestre-geral da ordem, de 1283 a 1285 (Le Goff, 2014).

O status do frade perante os cidadãos de Gênova, que o admiram, dentre outros pontos, por seu compromisso com a manutenção da paz na comuna, faz com que seja eleito arcebispo da cidade.20 Os genoveses reconhecem sua contribuição ao recusar o nome escolhido pelo pontífice. E, em 1291, conseguem o direito de “eleger” o próprio arcebispo: Jacopo (Fortes, 2003).

Jacopo de Varazze exerce essa função entre 1292 e 1298, ano de sua morte. Destarte, a personagem tem uma atuação relevante, ocupando altas posições, tanto dentro da ordem dominicana quanto na própria hierarquia eclesiástica. Tais posições lhe concedem um status capaz de revestir suas ponderações, posições e intervenções de significativa legitimidade.

Digno de nota durante seu arcebispado é o período entre 1292 e 1294, quando desempenha um relevante papel no estabelecimento da paz citadina ao costurar a interrupção – pelo menos temporária – das hostilidades entre os Mascherati, simpatizantes do Sacro Império Romano (gibelinos), e os Rampini, favoráveis à autoridade eclesiástica (guelfos) (Almeida, 2014; Le Goff, 2014; Musarra, 2018).

Jacopo de Varazze morre em 1298 e é enterrado na igreja de San Domenico, em Varazze. No fim do século XVIII, seus restos mortais são trasladados para outra igreja dominicana, a Santa Maria di Castello. A figura de Jacopo não é esquecida, como atesta a sua beatificação pelo papa Pio VII, em 1816 – mais de quinhentos anos após a morte dessa personagem.

O frade genovês é, portanto, um caso modelar para exemplificar a questão do status dentro do regime de verdade da Igreja Romana. Ocupante de altos postos dentro da ordem dos irmãos pregadores. Arcebispo da própria instituição eclesiástica. Detentor de considerável prestígio junto aos habitantes de Gênova. Tudo isso contribui para que Jacopo seja dotado de um status que valida e legitima suas ações; um status que o autoriza a determinar o que deve ser considerado verdadeiro.

E mais. É possível constatar a importância do dominicano em cada aspecto que vimos discorrendo até aqui. O status de Jacopo funciona como apresentação à Legenda aurea, produção robusta que serve como mecanismo ao regime. Afinal de contas, o reconhecimento do qual o frade usufrui faz com que suas atitudes e obras – como o legendário – contem desde já com significativa recepção nos mais variados meios.

As posições galgadas na ordem dos pregadores e na hierarquia eclesiástica, assim como o crédito com os genoveses e, por que não, com os lombardos propriamente ditos, do mesmo modo o legitimam como instância apta a sancionar o que é verdadeiro. Sendo que a experiência e habilidade como pregador21 faz com que suas iniciativas funcionem como maneiras válidas para ratificar discursos como verdades.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como antecipado na introdução, pretendemos apresentar aqui os contornos da participação mendicante naquilo que entendemos ser o regime de verdade da Igreja Romana no século XIII, que se encontra em constante construção/reconstrução desde o século XI. Nesse sentido, adotando como ponto de partida as considerações de Foucault (2016), percorremos cada um dos elementos que constitui tal regime, sempre destacando a participação dos frades no processo.

Desse modo, em um primeiro momento, discorreu-se a respeito dos mecanismos, entendidos como instrumentos concretos a ser utilizados dentro daquele sistema de poder. Como apontado, a produção letrada foi identificada como principal mecanismo no período em questão, tanto em razão do prestígio a ela conferido pelo uso papal quanto pelo emprego disseminado na sociedade.

Uma modalidade em específico recebeu maior atenção: a hagiografia. E sua escolha se deu por uma simples razão: trata-se de um texto bastante em voga e capaz de, graças a transdisciplinaridade que atravessa o período medieval,22 abarcar grande gama de assuntos em seu bojo. Além disso, delimitou-se ainda mais a seleção. Não nos ocupamos de quaisquer hagiografias, mas sim daquela produzida no seio das ordens mendicantes, com características próprias – as hagiografias mendicantes. E, dentro delas, destacamos a Legenda aurea como exemplo modelar.

Em um segundo momento, as atenções foram voltadas às instâncias aptas a sancionar algo como verdadeiro. Apesar de existirem outras, o foco recaiu – em consonância com o objetivo deste artigo – sobre os mendicantes. Assim, buscou-se inicialmente apresentar, de forma breve, o contexto de surgimento dessas figuras no Ocidente cristão. Duas ordens foram priorizadas: os dominicanos e os franciscanos.

A difusão dos frades pelo continente, principalmente pelo território da península Itálica, foi objeto de especial interesse. Dessa forma, foram assinaladas as relações estabelecidas com as diversas comunidades da região e, sobretudo, com as autoridades locais. Ponto que também recebeu destaque foi a atuação dessas personagens a serviço da Igreja Romana, participação que as legitimaram como instâncias reconhecidas para sancionar o verdadeiro.

O terceiro elemento abordado foi a maneira como a verdade é sancionada dentro do regime de verdade. Aqui, entendendo maneira como uma prática, identificamos na pregação seu principal exemplo para o período em análise. Buscamos então contextualizar a prédica sinalizando suas tipologias mais comuns – homília e sermão – e o material produzido a partir do século XII para orientar sua realização, como o ars praedicandi.

O objetivo por trás de tal exposição, que contou ainda com a apresentação do exemplum, foi ressaltar o caráter persuasivo dessa prática. Prega-se para convencer a outrem a respeito de algo. Daí a relevância da pregação para o regime de verdade. Não basta apenas produzir discursos para que sejam aceitos como verdades. É preciso persuadir, convencer as pessoas acerca dessa veracidade.

Finalmente, o quarto e último elemento indicado foi o status. Nesse ponto destacamos a importância de como a recepção da sociedade cumpre um papel fundamental na validação do regime de verdade. Não pode ser qualquer um a produzir, expor ou sancionar determinado discurso como verdade; é preciso ser alguém reconhecido pela comunidade que o cerca.

É essa aceitação social que autorizará determinada personagem a sancionar algum discurso como verdadeiro. Nesse sentido, escolhemos o dominicano Jacopo de Varazze para exemplificar a questão do status. Esse frade genovês é modelar. Ele ocupa altos postos tanto na ordem dos pregadores quanto na hierarquia eclesiástica e, além disso, nutre grande afeição dentre seus conterrâneos genoveses. Por isso, é figura-chave para compreender como o status legitima aquilo que é dito.

Esses quatro elementos – mecanismos, instâncias, maneiras e status – trabalham juntos para fazer o regime de verdade da Igreja Romana “funcionar”. E isso acontece de forma dinâmica, sendo continuamente reproduzido. Será a operação harmoniosa dessas engrenagens que fará com que os discursos construídos pela Igreja Romana sejam assimilados e aceitos pela cristandade como verdades a ser seguidas. Importante relembrar que os itens apresentados neste artigo não resumem todos aqueles que poderiam constituir tal regime; nem foi objetivo aqui apresentar seu funcionamento em si, mas tão somente sua configuração.

Buscamos com isso apontar, tendo como base a historiografia produzida, como a instituição eclesiástica procede, valendo-se da contribuição de dominicanos e franciscanos, para erigir seu regime de verdade. Afinal de contas, como dito antes, os movimentos clericais no tabuleiro que é a cristandade acontecem segundo avanços e retrocessos operados de acordo com a capacidade de persuasão da cúria e de seus agentes. É por meios negociados que o papado tenta fazer valer seus intentos (Rust, 2019), e não por meio de sua potencialidade coercitiva – não obstante seja empregada de quando em quando.

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Zerner, M. (2006). Heresia. In J. Le Goff & J. C. Schmitt (Coords.), Dicionário Temático do Ocidente Medieval (pp. 503–522). Edusc.

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* Mestre em História Comparada. Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-UFRJ). Largo São Francisco de Paula, n° 1, 2° andar, Centro, Rio de Janeiro – RJ. CEP: 20051-070. Pesquisador vinculado ao Programa de Estudos Medievais da UFRJ (Pem-UFRJ). Bolsista Capes. E-mail: andrero1898@gmail.com.

1 Por economia política da verdade, entende-se aquilo que se quer apoderar: os efeitos de poder gerados pelo discurso reconhecido como verdadeiro em determinada sociedade (Foucault, 2016).

2 Pode-se indicar as obras de diversos autores nesse sentido, sendo que muitos deles são frades. Assim, do lado da Igreja Romana, temos: De regimine Christiano, do agostiniano Jacopo de Viterbo; Sobre o Poder Eclesiástico, do também agostiniano Egídio Romano; Estado e Pranto da Igreja, do franciscano Álvaro Pais; etc. Enquanto, do outro lado, antagonizando a cúria, há: Oito questões sobre o poder do papa, do franciscano Guilherme de Ockham; Monarchia, do laico florentino Dante Alighieri; O defensor da paz, do também laico Marsílio de Pádua, reitor da Universidade de Paris, etc. Estes são apenas alguns exemplos.

3 Se faz igualmente importante salientar que as ideias de Foucault (2016) a respeito do regime de verdade, embora fundamentais para as reflexões aqui realizadas, são tão somente um ponto de partida para o trabalho que se segue. Neste sentido, valemo-nos de concepções outras para apontar os elementos constituintes do regime de verdade.

4 Como indicado, o regime de verdade é aqui concebido como um exercício historiográfico. Neste sentido, os itens que o compõem também são engendrados como construtos, ou seja, partem de uma noção contemporânea de seus significados para, a partir disso, desenvolver sua acepção sob uma dimensão histórica contextualizada no recorte temporal estabelecido na pesquisa, o século XIII.

5 Recebe o nome de contado o território circundante de uma cidade que esteja sob sua jurisdição. Patrick Gilli (2011) considera o controle sobre o contado como critério essencial para reconhecer um centro urbano como uma cidade.

6 A leitura pública é predominante até o século XIV, embora já fosse perceptível o crescimento da relevância da leitura em âmbito privado, que se consolidaria como principal modelo no século XV (Zink, 2006).

7 Por alegoria, entende-se o procedimento no qual uma sentença possa transmitir mais de um sentido, isto é, para além daquele esperado em sua observação literal.

8 Cabe lembrar que as Constituições das irmãs da ordem dominicana são redigidas pouco tempo antes da Legenda aurea, mais precisamente em 1259. A castidade, quando não a virgindade, é um aspecto comportamental imprescindível para as religiosas (e para os religiosos também).

9 De acordo com Miatello (2013), a partir do século XIII apenas são canonizados os veneráveis que, de algum modo, mostram-se úteis aos interesses papais. Assim, é mais comum de acontecer a canonização quando o postulante a santo em questão tiver se destacado, durante a vida, na luta contra a heresia ou na defesa da fé católica – o que, na maioria das vezes, significa a mesma coisa: defende-se a fé católica combatendo as heresias.

10Zerner (2006) aponta três ofensivas empreendidas pelo papa Inocêncio III na relação com os grupos religiosos: define juridicamente a criminalização da heresia, lança mão de Cruzada, e adota a tolerância em todos os lugares onde as novas formas de religiosidade podem ser integradas. Os grupos “abraçados” pertencem a essa terceira frente.

11 Essa prática de bater de porta em porta à procura dos meios para subsistência, ainda que seja a responsável por nomear os frades – “mendicantes” –, não é o foco inicial das ordens; ela será gradualmente sistematizada ao longo do século XIII. Em um primeiro momento, os frades estão mais preocupados com a organização e estruturação dos institutos em si do que com a própria questão da pobreza, por exemplo (Thompson, 2011; Powell, 2008).

12 As heresias estão longe de ser um problema exclusivo da esfera religiosa. Pelo contrário, como a cristandade está fundada em elos espirituais que designam a cada um seu lugar de pertencimento (Guerreau, 2001), desvios trazidos pelas heresias afetam a organização social do espaço, impondo um problema à autoridade estabelecida localmente.

13 Trata-se das bulas emitidas pelos pontífices Honório III, em 6 de maio de 1221; Gregório IX, em 10 de maio de 1230, e Inocêncio IV, em 4 de setembro de 1243 e em 5 de abril de 1254 (Bachrach, 2004).

14 Trata-se de Conradino, neto de Frederico II e postulante à coroa do Sacro Império Romano.

15 Assim são chamadas as facções pró-império situadas dentro das cidades.

16 Essa concepção de prática foi adaptada a partir das considerações de Roger Chartier. Para mais considerações a respeito desse conceito, ver Chartier (1987).

17 O conjunto de cânones pode ser encontrado no portal “Papal Encyclicals Online”, por meio do link: https://www.papalencyclicals.net/councils/ecum12-2.htm#cons

18 Em livre tradução: “Decretamos, portanto, por esta constituição geral, que os bispos designem homens idôneos para cumprir com proveito o dever da pregação sagrada, homens que sejam poderosos nas palavras e nas ações e que visitem com cuidado os povos que lhes forem confiados em lugar dos bispos, visto que estes por si mesmos são incapazes de fazê-lo, e os edifiquem pela palavra e pelo exemplo.”

19 Podemos citar os franciscanos Antônio de Pádua, Boaventura, João de Parma, Juan Gil de Zamora, etc. e os dominicanos Raimundo de Penaforte, Alberto Magno, Humberto de Romans, Tomás de Aquino, etc.

20 Documentos notariais arrolados da segunda metade do século XIII atestam a ocupação do posto de arcebispo por Jacopo de Varazze. Para mais informações, ver Calleri (2007).

21 A partir das Constituições Primitivas da Ordem Dominicana, pode-se constatar que apenas pregavam os frades considerados aptos nos estudos. Assim sendo, é inconcebível supor que alguém inapto para a prédica possa ter alcançado o posto de prior provincial da ordem. Para maiores informações sobre as Constituições Primitivas, ver Gelabert & Garganta (1947).

22 Para maiores informações a respeito do que chamo de transdisciplinaridade no medievo, ver Oliveira (2021).